
Mais de 150kg de vazio — um corpo que ocupa espaço, que marca presença, mas que por dentro é só eco e ausência
São Paulo, 29 de abril de 2024
Te aplaudir da plateia lotada depois do seu último agradecimento era uma cena constante na minha mente. Eu sempre visualizava esse momento de louvor coletivo por todas as suas descobertas ao longo dos anos. Sempre achava brilhante a sua forma de pesquisa, a dedicação e o envolvimento profundo com seus estudos. Depois, eu te esperaria apertar todas as mãos e agradecer aos parabéns, observaria um pouco distante a troca de cartões de visita, a caneta emprestada escrevendo seu e-mail num caderninho da jovem pesquisadora negra com os olhinhos brilhando ao te olhar. Em seguida desse momento, nos abraçaríamos, caminhando até a porta de saída. O carro estaria logo ali. Quer ir jantar? Não, estou cansada, prefiro ir para casa. E voltaríamos para casa, com aquela sensação de já ter vivido esse mesmo momento tantas vezes.
Eu queria estar junto na primeira vez que sua família entrasse num avião. Tinha certeza de que seria engraçado e emocionante na mesma medida: as descobertas, as surpresas, o frio na barriga na hora da decolagem. Sua mãe com medo, suas irmãs rindo e com medo também. Nós duas rindo com olhos cheios de lágrimas enquanto elas observavam a paisagem lá de fora.
Queria comprar um quadro, um artesanato, uma louça de barro da comunidade que visitávamos nas férias. Embalar com cuidado, encaixar num canto mais seguro do porta-malas, garantir que chegasse inteiro. Pensar onde colocar essa memória de onde estivéramos, como se marcasse o tempo e desse a direção para onde íamos. Fazer um jantar, duas taças de vinho que nunca bebemos, comer e apreciar o cheiro da comida misturado ao cheiro da casa, o sabor do tempero verde, o cheiro da pimenta-de-cheiro, a mancha de dendê que não saía, o trajeto que nunca fizemos.
Num dia mais estressante no trabalho, eu só queria chegar em casa e sentir o chão frio, a água gelada, mas esquecia as chaves. Onde você está? Vai demorar? Preciso de ajuda, estou sem as chaves. Calma que eu tô chegando. E eu aproveitaria para conversar com a vizinha: a perna da senhora melhorou? Eu vi seu netinho outro dia, tá enorme…! Não demorava muito e você chegava para salvar os minutos finais do meu dia. Um alívio e uma alegria silenciosa ao te ver chegar mostrando as chaves, como numa canção a ser ouvida pela última vez.
Mas, um dia, meus braços começaram a doer. A fadiga se tornava mais presente e forte. Eu remava e não via mais a direção. Onde eu entrava nesse cenário? Em qual personagem me perdia? Por que você não vinha me procurar? Não me via aplaudida da plateia por você. “Estar vivo é ser palavra na boca de alguém.”¹ E eu só queria ser sua palavra, alta e pública. Mas eu estava sozinha e cercada por desconhecidos. Apesar de ter representado algum sucesso, o vazio ocupava o melhor lugar daquele espaço. Você também perdia algumas inaugurações na minha família. Sequer imaginava que poderia fazer parte. Trazia para você aquela peça artesanal da comunidade que visitara… Não era nossa, era sua, só sua.

Foto by @marcusxcloud
Me senti fraca por dias depois que concordamos em seguir uma sem a outra, depois que aquela conversa se encerrou. Diferente do Google Meet, não havia botão para nos desconectarmos daquilo que construímos ao longo de anos — e isso era o que mais pesava dentro de mim. Alguns meses se passaram, e havia gatilhos que eu só descobri que eram gatilhos quando via meu dia útil se dissolver entre lágrimas e tentativas de seguir trabalhando. Ficar prostrada na cama não ajudava, e não podia me dar um dia de folga só porque lembrava de você: daquilo tudo que você carregava de significado, todos os símbolos, os cenários, os sonhos pensados e planejados para um futuro que jurávamos ser em breve.
Eu estava disposta a tudo para que nossos sonhos se tornassem realidade. Para que a experiência do bem-viver entre duas lésbicas negras chegasse o mais próximo daquele projeto encampado pelos movimentos de mulheres negras que conhecíamos bem. Mas o fato é que, amar mais à outra pessoa do que a si mesma nunca deu certo.
E aquilo que bell hooks ensina — que “a arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e afirmar“² — nunca me pareceu tão verdadeiro. Que o amor-próprio é diferente do amor interior — esse segundo que parte exclusivamente de si e em relação a si mesma. Mas só após sentir uma profunda saudade de mim é que pude reconhecer essa lacuna aqui dentro. E não havia remetente para endereçar essa culpa, então, eu me abracei.

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Era engraçado compreender o clichê de se querer a sorte de um amor tranquilo — porque a tranquilidade dava muito trabalho para ser construída, e, portanto, deveria ser protegida. Só então percebi quanta energia, dedicação e reza foram necessárias para conhecer a pessoa que agora me parece uma estranha. Talvez o mais difícil tenha sido confiar, me abrir, me permitir ser eu mesma — e agora ser uma transeunte na sua vida. Sem troca de mensagens para saber se passa bem, sem visualizar stories ou feed, sem encontros casuais, muito menos marcados, sem parabéns no aniversário. Eram quilômetros de distância materializando o abismo que havia entre nós, o qual eu insistia em ignorar.
Ao longo do tempo, percebia que intimidade demais, às vezes, abria espaço para gestos menos gentis, parafraseando Carla Madeira, e que estar sempre disponível parecia diminuir o mistério, e a convivência, em excesso, corroía aquilo que era afeto.³ Mas tudo isso é mutável — desde que haja vontade. Como ensina bell hooks, “o amor é um ato de vontade, uma intenção e uma ação.“²
Agora eu bebo vinho sozinha enquanto tomo sereno da noite paulista. O céu está limpo dessa vez. O calor é ameno, mas ainda se faz presente se não ligar o ventilador. Tento descobrir como me reencontro, agora sozinha, num espaço-tempo-presente onde haja alguma felicidade vezenquando. Recentemente, tive a sorte de encontrar uma pessoa doce, engraçada, linda por inteiro e disposta a ficar, participar, conhecer, ser parte, se mostrar e me convidar para entrar. Ela verbaliza amor no ato de ser&estar. E eu gostaria de entrar: completamente disponível, aberta, disposta a ficar, participar, conhecer, ser parte, me mostrar. Mas qual parte de mim continua inteira? Não encontro, por mais que eu procure. Me sinto vazia e profundamente despedaçada. O que reforça minha tristeza ao perceber que Ela chegou no meu pior momento — e que não há nada que se possa fazer sobre isso.
Não posso dizer a Ela que vou entrar e ficar se não tenho peso necessário para me manter no chão, sem o vento levar. Mais de 150kg de vazio — um corpo que ocupa espaço, que marca presença, mas que por dentro é só eco e ausência. Quem diria? Ela chegou quando eu mais precisava de mim — e eu não estava. “É quando não acreditamos que somos suficientes para nós mesmas que começamos a procurar pessoas em quem nos afogar.“⁴ E eu não poderia me jogar num oceano profundo sem salva-vidas esperando ser salva — seria injusto entrar na vida de alguém carregando feridas que ainda eram minhas para cuidar.

Foto by Jenny Saville – Propped
Diferente de alguns meses atrás, eu não quero que você venha me visitar de madrugada como canta Liniker. Eu só preciso continuar fazendo os movimentos de reconhecer o despedaçar dos meus sonhos, o desfazer da ideia de família, o redirecionar do dinheiro para aquele pedaço de terra, o cancelamento das viagens que nunca fizemos. Eu quero ser capaz de honrar esse passado construído e desconstruído — pois ele foi bonito também, foi especial e me transformou em uma pessoa melhor, eu sei.
E agora, mais do que nunca, me sinto como Belchior quando ele canta que não está interessado em nenhuma teoria, nenhuma fantasia, que ele só quer coisas reais: a realidade da autorrecuperação para construir novos planos e realizá-los.
Salvador, 02 de maio de 2025.
Pouco mais de um ano, retorno a esta página para complementar e deixar registrado que eu nunca sonhei sozinha. Sempre houve sua presença a planejar comigo, mas sempre houve também a ausência da iniciativa. Eu acredito que você já sabia que não iria continuar. Afinal, eu saí de Salvador e supostamente abandonei você. É o que andam me dizendo. Mas você não contou a história completa: que a minha saída foi estratégia apenas para sobreviver e retornar melhor do que fui. Meus móveis, minhas coisas, minha quartinha, todos os objetivos e coisas de apreço ficaram em Salvador, no lugar que eu chamava de minha casa. Era só o tempo de conseguir um trabalho 100% remoto ou presencial, que eu retornaria. Levou dois anos e um mês para isso acontecer. Eu sabia que conseguiria — só não imaginava que você não, que desistir fosse sua primeira opção.
Há detalhes e contornos mais profundos do que estes aqui registrados, mas me dou o direito de preservá-los para as amizades mais íntimas e minha terapeuta. Depois de tudo isso, não me sinto mais forte ou qualquer coisa de superação que o valha… Ainda estou em processo de cura, com dias bons e outros nem tanto, respirando fundo para continuar e não perder fé na vida, não perder meus sonhos e não desacreditar de que ainda há possibilidades de amor para mim, por aí.

by Firelei Baez, da série Natural Grooming
Tive que reconhecer que fazer de tudo por alguém não é demonstração de afeto — é um pedido de socorro. Não se passa por cima de convicções próprias, de moral ou caráter, para agradar ao outro; nem se realizam desejos de casal estando sozinha. Era apenas desejo de um lado, não do outro. Entendi, finalmente, que eu nunca seria suficiente, porque, ao fim e ao cabo, não era sobre mim. Sua covardia se escondeu sob o teto que construímos juntas — e, no fundo, eu sei: era mais fácil me deixar sofrer do que encarar a responsabilidade do que também era seu
Agora, a voz de uma irmã ecoa com a pergunta mais temida e difícil de ser respondida:
— Querida, você tem certeza de que quer estar bem?⁵
Referencias
¹ ACIOLI, Socorro. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p.115.
² hooks, bell. All About Love: New Visions. New York: William Morrow Paperbacks, 2001. [Tradução livre]
³ MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Belo Horizonte: Quixote+Do Editoras Associadas, 2021. p.95.
⁴ CHISALA, Upile; ALEIXO, Izabel. Eu destilo melanina e mel. São Paulo: Planeta, 2021. p.66.
⁵ hooks, bell. Irmãs do Inhame: Mulheres negras e autorrecuperação. São Paulo: Jandaíra, 2022. p.31.
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