Eu sei que vocês vão dizer: a questão é querer, desejar, decidir


Alguns anos me separaram dessa tela em branco cheia de atalhos virtuais. Alguns anos me distanciaram do ato de compor palavras, frases, sentidos e pensamentos. Alguns anos se passaram e eu senti uma grande parte de mim no escuro, abafada, acinzentada e no mute de um volume que antes era alto, barulhento, estridente e grave. Alguns anos e muitas, muitas coisas favoreceram o abandono desse espaço: o virtual, blog, mas também, um abandono íntimo que ainda não sou capaz de descrever com precisão, mas vou compartilhar algumas coisas no esforço de me deslocar desse não-lugar….

Há algum tempo tenho ensaiado escritas na minha cabeça, textos completos que eu gostaria de compartilhar com o mundo. Houveram noites em que eu não conseguia dormir porque formava-se na minha mente sequências de palavras, frases e parágrafos, com título e subtítulos completos de temas complexos, mas, havia dentro de mim um muro: algo sobrenatural, surreal, inexplicável, que constantemente pesava meu corpo contra a cama e convencia a própria mente à apagar o que havia escrito, como  se a tecla delete tomasse vida própria e saísse por aí, dentro de mim, apagando tudo que eu já tinha construído no pensamento. E eu adormecia cansada do exercício de auto-convencimento de que meus pensamentos não eram bons o suficiente, dignos de serem revelados ao mundo.

 

Photo by Zanele Muholi, Reclining Figure, 2006

 

Alguns chamam de auto-boicote, depressão, fraqueza, autodepreciação, tristeza, auto-ódio. Eu denominei abandono, porque aos poucos fui exercendo o ato e efeito de abandonar esse espaço tão íntimo na suposta certeza de que já havia completado uma “jornada” só porque já teria mais de cinco anos de blog, só porque minha vida e rotina mudaram completamente, só porque me dedicava a outros ofícios e, portanto, já escrevia em outros lugares e de formas diferentes. Elaborei uma porção de porquês ao longo desses anos, que forjaram esse lugar de abandono e infertilidade de uma tal maneira que, para chegar hoje e compor esse texto, eu simplesmente não me preparei. Não ensaiei. Não pesquisei. Não desenhei um roteiro, não cumpri nenhuma ordem pré-definida  da minha mente.

Tenho nos rascunhos do blog pelo menos uns 50 textos parados e inacabados, já datados,  que me parecem não fazer sentido mais na atualidade. Tenho esse sentimento constante de “não fazer sentido” ao pensar ser “escritora” ou “blogueira” (de blog). Devo dizer que a insegurança intelectual é uma poeira, grãos de areia incrustados no meu corpo e na minha mente de um jeito impermeável, onde não sinto água passar.

Photography by Khadija Saye

Em 2013 eu escrevi um texto cujo título era “Doses homeopáticas de aceitação pessoal” e relendo agora, percebo o quão submersa e envolvida estava na minha jornada interna. Uma jovem de 21 anos se descobrindo, desafiando a si mesma, improvisando, driblando obstáculos e caindo de cara em muitos outros, se machucando em cada queda mas, fundamentalmente, se levantando e seguindo. “Época boa de quando eu era jovem!” enfim, a hipocrisia. Eu escrevia sobre meus processos de aceitação e fazia recomendações aos outros e a mim mesma… Todos os poréns que já escrevi, todas as ressalvas que grifei, todos os parágrafos destacados de grandes intelectuais negras que já li… Nada disso me salvou de ser interrompida abruptamente pelo ódio dos outros sobre o meu corpo, minha existência.

Em 2016, antes de mudar para Salvador e finalmente começar a estudar, eu passei por um episódio de ataque de ódio no meu perfil do facebook. Esse episódio foi muito louco na proporção que tomou: mais de 3 mil comentários, não-sei-quantos-mil de compartilhamentos da foto, centenas de inbox cheios de mensagens de ódio, literalmente, de ódio contra mim. Por causa de uma foto.  Em seguida a esse ataque, uma onda de afeto, carinho e força me atravessou como quem abraça alguém que não vê há muito tempo. Muitas mensagens de apoio, mensagens de coletivos, figuras públicas, amigas e conhecidas, pessoas  dedicaram um momento do seu tempo para me enviar palavras bonitas para que eu me sentisse bem. Um tanto de pessoas desconhecidas a mim também apareceram e deixaram suas marcas. Aquilo foi realmente lindo! Nos anos que sucederam esse episódio, eu vi minha criatividade minguar, minha vontade de escrever e publicar se esvair; me vi afogada em trabalhos e estudos de forma a não dar espaço nem tempo para pensar em mais nada, quiçá escrever e publicar. E o tempo foi passando ligeiro…

by Sophia Glass, The Pull, 2010

 

A última vez que escrevi e publiquei algo por aqui foi no carnaval de 2018, na ocasião de uma ação publicitária de uma cerveja que, não lembro exatamente mas, fez uma sessão de fotos com pessoas gordas envolvendo tinta, pintura, etc, para celebrar a diversidade dos corpos no carnaval… Relendo o texto, me sinto um tanto envergonhada agora, mas não arrependida. É a escrita de alguém que ficou realmente ofendida, brava, se sentindo menosprezada e tantas outras coisas que prefiro não elencar. O lance é que, reagir à uma campanha publicitária evidenciou o quão machucada eu ainda estava por aquele episódio anterior. Ver uma grande marca de cerveja promover pintura corporal em pessoas gordas no carnaval, pra quem já estava se sentindo o cocô do cavalo do bandido, foi a gota d’água. Eu simplesmente parei de escrever e publicar. Naquele momento eu entendi que não havia nenhum tipo de ação afirmativa que me protegesse de sentir profundamente e fisicamente, a energia destrutiva das pessoas que acreditam veementemente que pessoas gordas não são sujeitas de si (pra não dizer coisa pior). Ignorei por meses o blog, quase chegou a sair do ar exceto pelo fato de eu ter apoio de uma pessoa que cuida dessa parte técnica e que manda o boleto pra eu pagar a hospedagem de tempos em tempos, aí eu lembrava.

 

Mas não quero fugir de contar o que me interrompeu, pois agora identifiquei o que foi e preciso registrar. Depois do ataque virtual, minha vida deu um 360º bem louco, absolutamente tudo mudou e eu substitui essas dores do episódio fatídico por outras dores, frustrações, alegrias, realizações, etc, na “nova vida”… Não cuidei com atenção do estrago causado pelas mensagens de ódio, menosprezei o impacto causado na minha saúde mental. Dei de ombros para meus choros repentinos, minhas vontades de só ficar em casa, ou minhas extravagâncias sagitarianas. Aquele episódio interrompeu meus sonhos e definiu meus próximos passos. Interrompeu esse processo de autoaceitação do qual eu tanto falava, alertava e ponderava que deveria ser cotidiano. Todas as mensagens que recebi naquela noite/dia no facebook,  tiveram e ainda tem grande influência na minha vida cotidiana. Sinto que há pouco tempo é que comecei a catar meus cacos e avaliar o que presta ou o que não. Pode ser que, chegando na casa dos 30 de idade, aquela onda de retorno de Saturno esteja batendo… E então eu tenha começado a reconhecer esses processos como eles realmente são: processos de violência. Não há muito o que elaborar sobre isso, foi violência, ponto final. Senti primeiro na minha mente, no meu psiquê e isso se refletiu no meu corpo, nas minhas decisões, na minha percepção de mundo, na minha autoavaliação enquanto pessoa, profissional, amiga e amante. Simplesmente fortaleceu  insegurança e auto-ódio que eu havia conseguido combater lá nos anos 2012/2013 em diante… Parece que eu voltei a ser a Jéssica adolescente de 17 anos, boba, insegura, com medo, inconsequente, que se joga sem analisar absolutamente nada; a Jéssica daquela época não via suas qualidades nem fortalecia suas boas habilidades, era focada nas coisas únicas e exclusivamente ruins que ela refletia no espelho.

 

on instagram @heartlandadventures

 

Nossa mente é realmente um universo a desbravar e ainda assim, um solo totalmente novo  e inabitado antes. Não fazemos ideia de como as redes sociais influenciam nossa vida até que algo fatídico como esse episódio aconteça. Antes disso eu já tinha uma cobrança de não postar qualquer coisa que viesse na mente, de analisar os cenários e avaliar minimamente, sem censura mas com cuidado, porque eu percebia que estava influenciando as pessoas e eu me assustei (um outro episódio, mas não de ódio, depois eu conto).   Aí eu passei de cautelosa para silenciosa, invisível, inofensiva nas redes sociais. Parei de postar qualquer coisa no facebook. No instagram só mantinha fotos mais pessoas e, vez ou outra, uma atividade política de relevância. No stories: só besteira e às vezes, uma música legal ou um evento importante. Twitter eu nunca fui muito assídua, então nada mudou. Mas foi o combo: zero publicações no blog, nada relevante nas redes sociais. Eu não entendia como importante minha opinião ou ~análise política sobre determinado assunto. Não só minha autoconfiança foi por água abaixo como o nível de confiança em pessoas despencou ladeira abaixo também, desde então: eu não escrevia e nem falava o que eu sentia para ninguém. Aos poucos eu tenho invertido o jogo, mas ainda é aquele passinho de formiguinha… Mas, reconhecer que os ataques de ódio que eu sofri em 2016 impactaram negativamente minha vida foi primordial para que hoje eu consiga escrever isso tudo e considere, inclusive, retomar alguns rascunhos de anos atrás e publica-los de verdade. Esse é um “novo início”, a demarcação de um novo passo em retomada da minha vida, do amor que eu quero voltar a ter: a escrita.

Melhor que isso, só ouvir essa canção na voz de Ellen Oléria

 

Ellen Oléria interpreta Desenho de Giz de João Bosco, piano Paola Lappicy, para o Festival Mucho!

 


Imagem da capa de destaque: Foto de Alile Dara Onawale, na ocasião do ensaio fotográfico “Um corpo negro, feminino e gordo no mundo”, realizado na sede das Capulanas Cia de Arte Negra (SP), com o afeto-produção de Renata Martins, Débora Marçal, Nina Vieira e Hanayrá Negreiros. Toda minha saudade ♥