Escurecendo memórias, alargando sorrisos em meio à questionamentos
Abrir a caixinha de fotos é sempre um momento muito gostoso que faço de tempos em tempos. E cada momento que revejo essas memórias no papel, um filme parece rebobinar minha cabeça num misto de euforia e surpresas (as fichas caindo); compreensões diferentes de cada imagem do que eu tinha há uns anos atrás. Claro, não pudera ser diferente pra quem passa por um processo de reconhecimento da própria identidade racial, do seu pertencimento em sociedade, o que você significa nesse contexto; é realmente um novo enxergar em cada foto… Um susto, também, ao perceber a tonalidade da pele ao longo dos anos, ao notar detalhes que antes passavam “em branco”.
Já tem um tempinho que eu tenho pensado em toda minha história, da minha infância e adolescência, a relação com a família da minha mãe e a ausência de um pai (branco) cuja família eu desconheço até hoje. Tenho pensado em como a questão racial nos toca tanto e nem sabemos disso, tampouco fazemos questão ( por exemplo, a família da minha mãe não se importa com isso). Há um tempo atrás eu estava no interior de São Paulo visitando minha mãe, e naquele período que eu passei com ela, descobri muito mais do que eu imaginava saber um dia. Eu realmente fiquei emocionada e honrada por ela me permitir saber de suas vivências passadas, dos causos terríveis que aconteceram com ela… Uma série de fatos muito íntimos pra ser colocados aqui, mas muito importantes, sabe… Em tudo que conversamos, pude perceber vários e vários momentos de preterimento e exclusão, violência simbólica, material e até mesmo física vindas da família e da sociedade.
Mas como eu falo pra ela o que é o racismo? Como eu falo de negritude se tudo (que é bem pouco) que ela conhece e acredita sobre cultura negra é que a religião de matriz africana é do diabo, as danças são encenação de sexo e, portanto, inapropriadas, e negros são só aqueles que passam nos programas sensacionalistas apontados como “marginal”, “vagabundo” e outros termos que nem carece destaque?! Como explicar pra minha mãe sobre outro dia que estávamos numa loja e do nada surge uma senhora branca tratando minha mãe como funcionária e que esse ato é recorrente com pessoas negras, porque somos vistas ainda como encarregadas da branquitude?! Como falar sobre racismo com quem se percebe “morena”, ou “quase branca” ? Acreditem, o debate é árduo… Apesar de, fui percebendo que não vou falar sobre racismo com minha mãe&família da mesma forma que o escrevo por aí a fora. Existe uma vivência que tem de ser levada em consideração antes de qualquer coisa. Consciência racial não é uma pílula que você toma e dali meia hora sente os efeitos e fica tudo bem. É um processo íntimo e sem prazo de validade, que precisa de alguém começando a plantar a semente da dúvida pra semear o questionamento… E assim vai levando, até germinar a semente do auto-reconhecimento. Eu tento fazer isso com ela, aos poucos e num outro ritmo.
Essa foto acima foi a primeira que eu vi quando peguei o álbum. Foi interessante observar e refletir sobre minha negritude e a forma como ela foi embranquecida e apagada ao longo do meu crescimento. As professoras ao redor não eram negras. Só eu e a minha mãe ali, destacando do todo. Foi ótimo ver logo de primeira essa foto, porque eu tenho me questionado enquanto negra de pele mais clara qual minha posição na luta anti-racista junto a outras mulheres negras, cujas vivências são tão diversas que não posso comentar. Esse questionamento se dá por motivos de entender que tenho privilégios dentro de uma sociedade racista, ainda que eu seja negra. Minha pele é o passaporte incontestável para ascender um pouco, mas nem tanto quanto uma pessoa branca. Até certo ponto, mais que isso já é reconhecer minha descendência, ancestralidade, fenótipo, e isso uma sociedade racista não faz por não querer que pessoas negras assumam seus lugares de poder. Uma sociedade racista não entrega de mão beijada poder econômico e reconhecimento étnico a toda uma população afrodescendente, porque daí já é se reconhecer como racista e perpetuadora de um genocídio milenar.
Aqui no interior (e na minha família), a ilusão de uma sociedade toda branca é presente (lógico, que surpresa seria se fosse o contrário), e a miscigenação foi (e continua sendo) uma manobra racista de manter o tom sempre mais claro, afim de uma aproximação máxima do padrão eurocêntrico de tipos físicos tidos como normal e bonito. Os anos se passaram mas a política embranquecedora permanece, e tomou proporções imensuráveis e formas muito peculiares de se desenvolver, de apagar a negritude a todo custo. Pessoas negras de peles mais claras vão receber a ilusão de uma pseudo aceitação que nunca acontecerá de verdade, mas vão até conseguir acessar lugares bem privilegiados. Uma pessoa negra da pele escura não. Porque a escala de cores age violentamente conforme o tom da pele, sem chance de aceitar uma negritude que é latente como marcador positivo. E o racismo predomina, seja a pele escura ou clara. Assume diferentes nuances e o reconhecimento de uma identidade negra se torna mais difícil, porque a todo momento vão querer te puxar pro lado branco da coisa: vão dizer “mas você não é tão escura assim” (num tom pejorativo), ou “alisa esse cabelo pra ficar bonita, sua pele já é clarinha”, “você é morena, não negra” na tentativa de dissuadir de diversas maneiras pra que nenhuma das suas características físicas sejam reconhecidas como pertencentes à negritude, o convencimento de que ser uma pessoa negra é ruim, portanto, ser uma pessoa branca é tudo que envolve positivamente o imaginário social, desde à estética até a ideia de ser alguém bem sucedido.
O racismo também se dividiu em escala de cores para agir meticulosamente em cada pessoa afrodescendente, de forma que ela não reconheça seus antepassados e muito menos reconheça suas características físicas como tal. Um crime ardiloso que nos leva um labirinto do Fauno
Eu lembro que meu cabelo passava a maior parte do tempo preso, depois na adolescência, ele passou a maior parte do tempo alisado; só soltávamos o cabelo em ocasiões específicas e ele tinha que estar bem “controlado”. Minha mãe também não teve por muito tempo esse volume de cabelo todo aí das fotos. Não me lembro de ver minha mãe com o cabelo crespo que ela tinha, há tempos tá alisado e murcho. Não só o cabelo é denominador comum entre nós, mas a pele e as tentativas de embranquece-la, idem. Lembro que meu nariz também foi um “problema” por ser “largo demais”, e até cirurgia pra afina-lo já me foi indicado… E eu era só uma criança quando comecei a ouvir essas coisas. Eu não fazia ideia do que isso significava e passei uma grande parte da minha vida nessa inércia racial.
Estabelecer minha identidade racial, me afirmar perante todo mundo como negra, é uma postura política, não só de um reconhecimento individual, mas muito mais coletivo no sentido de me enxergar como pertencente a um grande grupo populacional que é majoritariamente e historicamente excluído em todas as esferas sociais.
Teve uma vez que eu fui à uma reunião do Movimento Negro na Apeoesp. Eu não entendia do que se tratava todos aqueles assuntos, fiquei perdida, mas eu só estava acompanhando minha namorada na época. Lembro de olhar ao redor e ver muitos negros e negras, pessoas que se pareciam comigo; homens que lembravam meus tios e minhas tias. Um tempo depois, eu consegui me entender negra quando deixei de alisar o cabelo por pura falta de dinheiro (não foi uma escolha, eu não fiz transição capilar, eu só tinha dinheiro pra comer e alisante não se come), e a partir desse momento que eu notei mais contundentemente os olhares e comentários sobre mim. Conforme meu cabelo crescia, mais eu recebia comentários racistas. Conforme meu cabelo crescia, mais eu ia identificando situações racistas. Isso tudo se deu muito graças à minha aproximação com o feminismo e o movimento negro, que me deram base intelectual e psicológica pra compreender, pouco a pouco, qual é de fato o cenário que eu vivia, onde eu estava inclusa. Ao mesmo tempo em que eu ia descobrindo o que é ser lésbica também. Foram processos que não aconteceram separadamente e lidar com tudo ao mesmo tempo só foi possível pela imersão que eu fiz no feminismo, no movimento de lésbicas e bissexuais de SP, movimento negro com minhas idas à reuniões e plenárias, onde eu ficava lá no fundo só observando. Se não fosse pelas mulheres negras que eu tive a chance de conhecer e conversar um dia, se não fossem elas acreditando no que eu pensava, eu acredito que tudo seria muito mais difícil. Eu tive apoio de inúmeras maneiras e isso é essencial! Como se reconhecer negra sozinha, sem ninguém pra compartilhar desabafos e conquistas?! Não dá. Nem tem que dar. A força da ancestralidade é regida pela coletividade também, e pelas conexões que temos com as pessoas.
Existem problemáticas que envolvem a ação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) historicamente, apresentando falhas graves que vão dificultar nosso entendimento institucionalmente (e a falha é ideologicamente proposital):
“Os censos brasileiros historicamente apresentam estranhas dificuldades quanto à identificação da população: alterações nos critérios de classificação da cor ou raça, que dificultam a comparabilidade ou compatibilização dos dados de um recenseamento para o outro, como aconteceu nos censos de 1950, 1960 e 1980; descontinuidade ou omissão no levantamento do quesito como ocorreu no censo de 1970. Essas ‘‘entradas e saídas” do quesito no censo ou as alterações nas categorias de classificação e, ainda, as poucas tabulações que são divulgadas desagregadas por raça ou cor quando o quesito é coletado, têm postergado o aprofundamento do conhecimento sobre as desigualdades raciais no Brasil.” Sueli Carneiro, em A miscigenação racial no Brasil.
Não foi do nada que a auto-declaração das pessoas como pretas ou pardas ultrapassou a auto-declaração de pessoas como brancas no último censo realizado pelo IBGE em 2010, onde 50,7% da população se entende como negra e reporta isso ao Estado. São também as pessoas negras de pele clara indo de encontro a um escurecimento da mente, que eu acredito ser consequência da luta anti-racista que vem de anos a fio, onde atualmente têm se alastrado pela juventude e repercutido de inúmeras formas, promovendo o reconhecimento e valorização da negritude em seus mais variados tons. A “geração tombamento” que o diga, né?! Termo que vem sendo usado pejorativamente contra jovens negras/os que se apropriaram politicamente de sua estética e referência ancestral de África como fonte primária para seu reconhecimento racial, e que infelizmente, muita gente critica de forma equivocada as formas do fazer militância dessa juventude que gosta e se expressa através dos diferentes tipos de se ter um cabelo crespo, usam e abusam de cores, tranças e dreads, ressignificando a moda e os comportamentos; a música também está presente bem como a dança nunca deixou de estar. E esse equívoco em se apontar uma geração de jovens que também está nadando contra corrente racista como se estivessem errados em agir como querem, me parece uma contraproducência sem tamanhos, reproduzindo a mesma lógica racista que teimar em nos classificar como unos, com um padrão solidificado de ser negra/o; deixando plainar livremente as diferentes formas de ser branco, as diferentes tonalidades que nesse grupo existem, assim também deixa-se passar batido as varias formas que o racismo toma quando é pra agir em prol da exclusão de negras/os.
Enquanto tivermos o racismo como marcador de identidade racial, quero dizer, enquanto uma pessoa só puder se enxergar como negra se ela tiver passado por violência, essa busca identitária ficará atrelada sempre à um histórico de violência. Ser negra não é tão somente ser vítima de racismo, mas infelizmente essa é uma chave comum à toda população negra que é lida como tal (principalmente em âmbito institucional) e sofre diretamente com o racismo. Somos diversos, com muitas possibilidades de existência levando sempre em consideração nosso contexto hiper miscigenado e superestimado (democracia racial é uma falácia!), e teremos de lidar com isso também, mas de uma forma transformadora que fortaleça nossas identidades e não invisibilize a vivência de cada uma/o; uma ruptura da estrutura racista – penso eu- que vem justamente quando a então “morena/o”, “miscigenada/o”, vira o jogo e se compreende, pessoal e coletivamente, enquanto negra/o e passa a destruir ideais racistas cravados em sua pele e cotidiano (não necessariamente através da militância de rua e reuniões, acredito em mil formas de militância por aí), ampliando esse auto-reconhecimento a quem está perto atingindo muitos outros que estão longe e nem nota-se. Mas o efeito dominó chega! Ahhh se chega! A força que se renova com a consciência política do que é ser negra no Brasil é avassaladora, sobretudo, transformadora.
Porque é muito interessante manter uma população majoritariamente negra perdida em tons padrões e ancestralidade dilacerada (mas já em recuperação permanente). A ideologia racista age também psicologicamente para garantir isso, e quando uma pessoa negra se compreende como tal, as bases estruturantes do racismo se estremecem. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, lembram disso? Pois é! Que sejamos água então, água dura e a cada dia que passa nos multiplicaremos até implodir de dentro o racismo estrutural, até que ele vire pó pra gente lavar e deixar escorrer ralo abaixo.
Aí q saudades lembro muito nossa infância eu vc e a paulinha lembra ??? Toda sorte de bênçãos pra vc e sua família Bjs saudades
Jessi, ver suas fotos é viajar no tempo, minha tarde ficou mais nostálgica, não conhecia sua página, vou passar a acompanha-la… sobre o racismo e preconceito, existe, está em todo o lugar, divide , separa e exclui, sobre a equação internet+preconceitoxracismo= gente kagando pelos dedos todos os dias, é motivador ler seus textos…Parabéns.