Você já sentou ao lado de uma gorda no ônibus?


Ultimamente eu não tenho mais passado pela catraca. Eu evito, já me dei por vencida que aquilo não me serve, principalmente, que eu não tenho que me submeter aquele negócio pra provar nada pra ninguém! De tantas vezes apertada naquilo chega um momento que a ficha cai e você se pergunta porquê? Pra quem? Preciso mesmo disso?! De certo que isso não foi a coisa mais fácil que eu compreendi recentemente, na verdade é aquele longo processo sem data de validade em curso na minha vida… Porque empoderamento a gente até tem, mas nada é suficiente para blindar a violência simbólica do dia-a-dia. E muitas vezes eu não sei se foi racismo, gordofobia, lesbofobia… Alguns momentos eu sei que aquela risada no fundo do buzão foi por ter me visto travar na roleta, eu reparo em tudo e percebo nitidamente quem cochicha depois de olhar pra mim. Mas não exclui minhas identidades como um todo. Em alguns momentos se sobressai gordofobia, noutras, o racismo… Mas sempre um de mão dada com outro, onde o emaranhado está ali, está impregnado na minha pele toda, na forma do meu corpo, no meu jeito de andar e gesticular, de vestir. Eu realmente não busco mais fuga alguma porque a todo momento eu me deparo com o flagrante institucional que decreta meu fim enquanto me observa e investiga – me põe à prova- a partir do que eu sou, das características que eu carrego.

by Clarity Hanes, Gwen, 2010

by Clarity Hanes, Gwen, 2010

 

Voltando às catracas… Eu não uso mais, exceto em 1 ônibus onde a catraca é diferente e ótima. Nos demais, eu já desencanei. Isso se deu muito pelo fato de estar namorando uma mina preta&gorda que está atenta ao que significa andar de ônibus, nós duas juntas; muito mais lúcida agora, eu percebo a hostilidade simbólica incidindo sobre a gente. Os olhares são terríveis, os comentários inevitáveis. Tal qual São Paulo onde eu vivia, aqui acontece a mesma dinâmica só que em outras faces, não saberia explicar a peculiaridade… É muita coisa para se examinar e quanto mais despedaça, menor fica e mais difícil enxergar o todo. Às vezes Ela pede ao motorista para abrir a porta de trás por mim. Uma vez o motorista não queria abrir, e ela enfrentou e insistiu, debateu e ele abriu a porta. Eu nunca tinha visto alguém me defender naquela situação… E sempre fui motivo de escárnio e risada, sempre fui o tom de voz culpado a pedir para descer na frente, e a resposta sempre surge como se fosse um favor, uma redenção cristã atender àquele pedido. Isso sempre foi muito horrível mas não foram poucas as vezes que eu naturalizei esse tipo de situação, que eu cedi sem que tivesse consentido, porque era a única coisa que eu podia fazer naquela situação.

possibilidades no ócio, luzes, corpo gordo. Março 2015 By  Jamille Nunes

possibilidades no ócio, luzes, corpo gordo. Março 2015 By Jamille Nunes

 

 

Então ela faz essa gentileza por mim, abre-se as portas, eu entro. Procuro um lugar vazio, de preferência os amarelinhos poltrona única: são tão raros! Sério, é muito difícil encontrar ônibus com esses bancos “especiais”, em frota de ônibus novos até tem, mas os antigos que ainda rodam… Só a cor é amarela, o banco continua sendo o mesmo. O que demonstra que as pessoas que tiveram essa brilhante ideia (!) não sabiam nem para quem estavam fazendo. Invisibilidade tamanha, que você cria uma suposta medida de “inclusão” porque supostamente diz que enxergou as “tais pessoas” excluídas. Mas a real é que não dão a mínima mesmo! Não estou reivindicando nada… Banco maior não faz ninguém deixar de me odiar. Banco maior não cabe a ojeriza que as pessoas carregam em seu imaginário ao se deparar com duas sapatonas pretas Y gordas sentadas  juntas no ônibus. É uma falsa reparação essas cadeirinhas. Nem como medida paliativa eu consigo conceber, porque não reconhece a existência das pessoas gordas (a não ser pra dizer que estão doentes), muito menos o direito à cidade, lazer, trabalho, etc; o mais interessante seria ter uma mudança nas catracas mas nem isso… Enfim!
Quando nos sentamos juntas e metade da outra fica pra fora, o abraço é obrigatório para a busca de um encaixe mais cômodo, e o revezamento 4×2 é meio desengonçado porém muito eficiente, favorece também um carinho.  A gente cola um corpo no outro, sente que preenchemos todo espaço ali… Os solavancos são iminentes, não tem jeito! E a gente se aperta mais, e se assusta com a gente mesma, quase como estranhas que pedem desculpas por esbarrar na pessoa da frente. E eu atrevo a dizer que é o mesmo susto que levam todas as pessoas que arriscam se sentar ao lado de uma mina gorda e logo em seguida, se levantar e sentar no outro canto. É um susto encostar demais num corpo gordo, perceber que chegou ao limite do corpo de alguém e que acontece uma fricção involuntária entre as partes colantes porque aquele espaço é apertado demais para o olhar que julgou caber ali. Eu discordo daquele bordão “Os incomodados que se mudem, eu tô aqui pra incomodar!”  porque eu não estou à disposição dos outros para “incomodar”, puro e simplesmente. Eu só levo essa pecha de “A Incomoda” por não ter minha humanidade reconhecida plenamente, acreditando também que minha presença ali seja pedagógica e cirúrgica, embora isso me tire do chão muitas vezes, porque não é todo dia que você tá pro enfrentamento – mas o enfrentamento não deixa de acontecer, não é uma opção. Eu incomodo porque simbolizo tudo de ruim que essa sociedade não quer para si – pessoas cisgêneras brancas, heterossexuais, herdeiras, sobretudo, homens. Eu sou tudo que ninguém quer ser. Ninguém estuda para ser como eu! Ninguém quer ser preta, pobre,  sapatão, gorda muito gorda, cabelo crespo, ter pelo muito pelo… De forma mais erudita, explico: Não sou referência alguma.

by Julia SH, +, 2016

by Julia SH, +, 2016

 

 

O espelho de Narciso ainda vislumbra apenas o diâmetro de seu umbigo, e como Grada Kilomba expõe “vivemos num cubo branco, que reflete a si mesmo”. Bem certeira a ponta dessa lança, não?! O fato é que sentando junto de outra gorda, eu enfrento esse estigma e (re)afirmo que os espaços não foram pensados para nossos corpos. Às vezes a ideia de “estar mais confortável” parece melhor, mais atraente (claro, quem não quer viajar numa boa, nean?), mas também se espelha como uma armadilha, a mesma falsa aceitação que emanam contra mim, eu devolvo numa outra mina gorda se não pensar a respeito. Tenho a chance de ficar ali e ser acompanhada e companhia à outra mina gorda que não vai ver o lugar vazio preenchido por discriminações. Senta do lado da gorda, se espreme também, se esforce também. O incomodo não é físico na maioria das vezes, ele é moral e cristão. Ninguém se machuca por causa da bunda um pouquinho de fora, já fiquei quantas vezes assim para não “incomodar” a outra pessoa ao meu lado?! E então vocês se recusam a ir até o ponto final ao lado de gordas com a desculpa de que está apertado, mas não escondem a profundidade pisquíca desse aperto, desse descompasso, descontrole… vergonha! Vergonha! Vergonha! Nem sentar ao lado no buzão, no recreio, na sala de aula, no trabalho… Não pode, não deve! Nessa sociedade lipofóbica, sentar ao lado de uma gorda parece ser altamente contagioso. Em contra partida, se esta mesma gorda se desloca do lugar subalterno para um outro, de firmeza em estar bem consigo e afirmar isso publicamente, esse ato é visto como “coragem” aos olhos dos mais ~sabidos, de quem jura que está elogiando “mas você é muito corajosa por fazer isso!“. Corajosa por existir? Por não obedecer à normativa heterossexual e simplesmente ser eu? Isso não é um elogio.  Coragem eu preciso para pular de para-quedas ou andar numa montanha russa, fazer uma tatuagem… sei lá. Não sou corajosa por andar de ônibus, por sentar-me como todo mundo; não sou corajosa por  problematizar isso e expor minhas reflexões e minhas fotos. Existo, gente, assim como todo mundo que existe e decide publicar fotos de si mesma numa rede social. Essa ideia de transformarmos as pessoas em heroínas porque conseguiram ser ou fazer tudo que é socialmente rejeitado, só colabora para manter essas pessoas no lugar de subalterno, agora com um status adequado à sua época, e então elencamos algumas pessoas para serem AS ADMIRADAS, AS BELAS E CORAJOSAS e no restante do tempo a gente segue simplesmente mudando de lugar onde tiver uma gorda ao lado.

 

 

 


  • Imagem destacada: Laura Aguilar untitled self portrait -1991

 

4 Comments

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  1. 2
    Dani Costa

    É maravilhoso ler isso. Saber que não estou pensando besteira quando me identifico com suas palavras, que não estou sozinha ❤

  2. 4
    Dayane

    Meus Deuses… Alguém usou todas as palavras , das quais eu não sabia mê expressar . Obrigado por este texto , vivencio isso basicamente todos os dias de minha vida até o momento.

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