Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente: sobre ambiente de trabalho nada inclusivo


Nessas últimas semanas pipocou nas redes sociais, reações e mais reações ao programa de trainee do Magazine Luiza, que foi abertamente focado em pessoas negras. Um movimento em direção à “reparação social”, “equidade racial” em uma “ação afirmativa”. Não tenho dúvidas da importância e legitimidade desse tipo de processo seletivo, finalmente estão entendendo que pessoas negras tem acessos diferentes das pessoas brancas, logo, as exigências dos processos seletivos são demasiadamente excludentes. Mas quando se trata de população negra é aquele velho ditado “tudo que é bom dura pouco”, logo veio a retaliação em forma bruta: um defensor público da Defensoria Pública da União (DPU) abriu uma ação civil pública contra a empresa, pedindo R$ 10 milhões de reais (isso mesmo, 10k) por  “por danos morais coletivo”.  As regras sempre mudam quando se trata do jogo social envolvendo pessoas negras.

Mas não é sobre isso que eu quero escrever, não diretamente… Trago aqui uma parte II  ( a primeira parte é essa aqui) do meu processo de identificar, reconhecer e tentar curar certas feridas causadas pelos acidentes na encruzilhada da opressão, vide Kimberlé Crenshaw. Neste momento, se trata da experiência em um ambiente de trabalho, num órgão público que, diferente de grandes empresas como Magazine Luiza, tem pouco ou nenhuma ação afirmativa efetiva, salvaguardando as cotas raciais nos concursos públicos. Mas o que acontece no dia-a-dia é constantemente silenciado. Eu guardei muita coisa só pra mim e, definitivamente, preciso registrá-las, de modo que possa servir para um debate coletivo acerca da ~diversidade e inclusão no mercado de trabalho.

 

O COMEÇO, QUE JÁ ERA O MEIO E PARECIA QUE NÃO TINHA FIM

No ano seguinte ao ataque de ódio que sofri no facebook, tive então a ótima notícia de aprovação na Universidade Federal da Bahia: eu iria, finalmente, conseguir estudar e encerrar um ciclo importante da minha vida profissional, sem precisar que eu e minha mãe nos endividamos para pagar uma graduação. Lembro que na época eu conversei muito com a senhora minha mãe sobre isso, argumentando que nós não tínhamos como financiar meus estudos, nem sob muito esforço e que, então, eu teria sim que tentar uma universidade pública, era o único jeito. Pois bem: Início de um sonho // Deu tudo deu certo, só que mais ou menos. E lá fui eu mudar toda minha vida, depois de cinco anos vivendo em São Paulo, alterar todo a rota e subir em direção ao nordeste, num lugar que eu nunca havia pisado antes. Até aí tudo bem, meu sol em sagitário grita de felicidade com esse tipo de mudança, eu realmente consigo me adaptar bem aos locais, gosto das mudanças. No entanto, psicologicamente, eu não estava preparada. Tinha essa marca do medo e da insegurança talhada dentro de mim, esculpida por mãos virtuais alheias  que fizeram um trabalho muito bom diga-se de passagem. Eu ainda estava fragilizada de toda aquela situação em 2016, mas não tinha dimensionado o tamanho do estrago. Esse era o meu contexto mais íntimo e silenciado. Por fora eu estava toda alegre, encantada com a cidade, mas por dentro era algo como “credo que delícia”, só que em níveis mais profundos.

by Hermann Mejia

Graças à uma mulher preta, eu consegui um estágio no Ministério Público da Bahia (MP-BA), num núcleo especial que lidava diretamente com mulheres em situação de violência. A princípio, pensei que seria um lugar perfeito para uma estudante de gênero cumprir seu estágio obrigatório e ainda, de forma remunerada. Um sonho! É tão difícil estágio remunerado para o curso de Gênero, imaginem aí! Já comentei com algumas amigas que, esses dois anos que passei no MP, foram os piores anos no que diz respeito à trabalho na minha vida.  Depois que eu saí de lá, em 2019, a ficha caiu e eu pude entender criticamente todas as situações que vivenciei naquele órgão público. E aqui, nesse relato, eu não vou nomear os bois porque é sobre a pastagem que quero tratar: uma dimensão estrutural do racismo e outras intersecções de opressão, não quero e nem vou identificar os episódios de forma individual no sentido de culpabilizar as pessoas, pois eu já fiz muito isso há um tempo atrás. Passou aquele ressentimento individual, meu foco agora é analisar de forma crítica e propositiva para que outras meninas negras, jovens negras como eu, tenham força e voz para não não sucumbir diante de espaços problemáticos.

 

Lembro de no início não ter uma função muito específica para mim lá dentro. [ Parêntesis: Graduação em Gênero ainda carece de construções sólida no que tange a profissão, logo, o estágio na área ainda fica deslocado, à mercê das diferentes compreensões que se tem em diferentes ambientes de trabalho. Fecha parêntesis. ] Passei a maior parte do tempo redigindo ofícios, organizando documentos em pastas, verificando se tal documento havia chegado ou não… Rotinas administrativas, eu diria. Até aí tudo bem. Mas conforme os meses foram passando, isso se tornou maçante e sem sentido. Sempre soube que eu poderia colaborar com outras  coisas, afinal, eu era uma estudante de Gênero E uma ativista política, U-A-U  que belo combo!  Eu acreditava que poderia fazer algo diferente…. E até faria, se a estrutura do Estado fosse mais maleável, menos ferro e mais borracha. Naquela época, eu tinha muitos desejos de mudar o cenário, de ~fazer a diferença, sabe? Com o tempo isso tudo se esvaziou pelas mãos. Fui cumprindo o roteiro tal qual me diziam, pois não havia um planejamento preciso sobre a minha função ali, no meio do caos organizado, funcionando a pleno vapor. Não tinha chances de eu chegar e sentar na janelinha.

by @gessflyy on Instagram

Depois de alguns meses me mudaram de sala. Agora ficava numa sala sozinha, que abrigava também o almoxarifado, de modo que as pessoas só entravam lá para pegar material, conferir material, fazer inventário daquela peça que eu era ali: checando se eu tinha chegado ou não.  Muitas vezes eu não tinha o que fazer, literalmente. Me sentava na cadeira e ficava ali, esperando orientação, porque depois de várias tentativas de buscar alguma coisa pra fazer e não ter retorno, eu me conformei com a ausência do trabalho e  só segui o fluxo. Usava o computador para estudar. Muitas vezes eu me senti mal por estar ali “sem fazer nada”, mas na verdade, eu sentia que não era útil, uma frustração batia de repente. Me senti estranhamente amiga de Grada Kilomba lembrando de uma passagem em seu livro “Memórias da Plantação” em que ela relata sobre seu processo de chegada no doutorado em Berlim, quando da interação com uma funcionária branca da biblioteca:

 

“(…) Aqui, a negritude vem coincidir não apenas com o “fora”, mas também com a imobilidade. Estou imobilizada porque, como mulher negra, sou vista como “fora do lugar” – na não marcação da branquitude (Ahmed,2000). A negritude, por outro lado, é incompetente: diferente – “Você não é daqui” – , incompetente – “somente para estudantes universitários/as” – , e assim imobilizada. (…)”

 

 

IMOBILIZADA é assim que me senti durante muito tempo no MP. Sem vida, sem ser vista ou reconhecida. Imobilizada. Imóvel. Como um item, um tótem, um aparador da sala que você troca de lugar conforme o que der na telha num dia ensolarado de limpeza na casa. Esse sentimento foi crescendo a medida que eu vivencia micro violências naquele espaço. Um dia foi a conversa sobre uma pergunta   raça/cor que constava no formulário para o público externo, uma ação em parceria com outra instituição, em que eu fui solicitada para verificar o que poderia alterar ou não, pois ~sou estudante de Gênero, ali eu poderia saber alguma coisa. Na sala, junto com uma funcionária branca “da casa” (leia-se concursada há décadas), e outra estagiária de ensino médio preta (não parda, não pouca tinta como eu mas uma mulher preta). Estávamos as 3 na sala quando a funcionária branca argumenta sobre as categorias de cor e raça definidas pelo IBGE, algo no sentido de que “não era bem assim”, pois ela mesma não era branca porque “Olha aqui minha cor, igual a sua” e pôs o braço quase junto ao meu como quem mede a tonalidade de tecidos da cortina nova. E ainda perguntou para a outra estagiária “Jéssica não é negra, né?”. E qual não foi meu espanto ao ouvir da outra colega que sim, Jéssica não era negra.  Uma resposta completamente condicionada ao que a funcionária branca queria ouvir, pela certeza de sua brancura e poder ali exercido sob nós, a concordância saiu nas palavras de quem não tinha opção. Os detalhes dessa relação entre elas não serão possíveis descrever,  mas acreditem, estava posto a dinâmica de superioridade//subalternidade. Me atenho ao fato de que, para sustentar uma argumentação de um formulário, o quesito raça/cor da própria interlocutora foi acionado para descredibilizar não somente minha resposta, como também o meu corpo, minha existência que desde o início chegara ali enquanto negra, mas que num momento, deixa de ser a partir do apelo argumentativo da pessoa branca.

Untitled from Like a Stone series, 2011. 40×53.3 inches. by Pinar Yolacan on tumblr

 

 

Lembro que ainda tentei dizer algo sobre a importância das categorias cor/raça no formulário mas sai da sala logo em seguida ao comentário porque não havia mais nada a ser dito, uma vez que ela era “superior” a mim, era quem definia o processo todo. Então eu sai, fui ao banheiro. Não chorei nem nada do tipo, mas fiquei me olhando no espelho perplexa por ter vivenciado aquela experiência, ali… No meio da rotina de trabalho, como quem troca papel ofício da impressora e compara tons de pele para embasar uma fala. Esse episódio não foi o primeiro, na Defensoria Pública do Estado da Bahia, onde também estagiei, o mesmo ato foi feito por uma funcionária branca, mas agora num tom de ~brincadeira. Ali, dessa vez, eu reagi de outra maneira e fui penalizada por isso: tive um contrato de estágio obrigatório não assinado. Senti a iminência de um desligamento por uns três dias até que tive uma conversa com a “superior” que mediu nossas peles.  A piada é mais do que uma narração; ela se torna uma experiência em si. (Kilomba, 2019). Voltando para o Ministério Público, ainda tenho algumas situações para compartilhar, foram muitas vezes que eu desejei simplesmente não aparecer na manhã seguinte, mas eu precisava daquele dinheiro todo mês, não tinha alternativa. A necessidade em confronto com o desejo, ambos em direções opostas, ambos se encontravam na curva da necessidade e, portanto, obrigação.

 

Em mais um dia comum naquele espaço público e permeado por micro-violências diárias, eu estava na sala-almoxarifado, como de costume, fazendo alguma coisa que já não me lembro o quê. De Repente, a porta se abre e duas pessoas adentram já conversando. Uma delas chega a encostar na minha mesa, ao que eu olho, estão ligeiramente ansiosos, agitados… Quando o jovem branco emenda “mas você não fala pra ninguém que eu te contei, viu, é segredo nosso” e seu par, uma jovem negra estagiária de outra área da repartição pública, confirma “lógico que não, fica tranquilo!”.  Essa cena confirmou todo um processo de desumanização que eu já estava sentindo, bateu de cima abaixo no meu corpo, me petrifiquei ao testemunhar aquela cena na qual NENHUMA daquelas duas pessoas fez de conta que havia alguém ali. De fato, não havia. EU não era ninguém. EU não tinha alma, sequer era um corpo. “E eu não sou uma mulher?” perguntou Sojourner Truth em 1851, e essa segue sendo a pergunta de 1 milhão de reais, ou como dizemos em Salvador: “Quem souber morre!”  Não. Eu não era uma mulher. Era qualquer coisa, menos um ser humano. Digo isso porque não havia possibilidade de não me enxergarem ali, estacionaram na minha frente. Eu sou grande, gorda, na época ainda usava cabelo roxo. Como não me viram aqui? Não há justificativa plausível para  diminuir aquela atitude racista, pois se fosse uma das jovens brancas estagiárias de Direito, certamente seriam cumprimentadas, como sempre foram – elas eram as “doutoras”. Ninguém deixa de enxergar as pessoas brancas, mas pessoas negras são mero detalhes, adereços, decoração. Constantemente realocadas para o canto empoeirado.

 

by Khadija Saye

 

Imediatamente eu me vi no artigo de Patricia Hill Collins “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”, numa passagem específica quando ela trás à cena a importância fundamental da mulher negra se autodefinir e autoavaliar, no sentido de se potencializar positivamente como  “uma forma importante de se resistir à desumanização essencial aos sistemas de dominação” (COLLINS, 1986), esse lugar específico, caro e potente que somente ser uma “outsider within” te proporciona, segue:

 

Um dos melhores exemplos desse processo é descrito por Judith Rollins (1985). Como parte de seu trabalho de campo sobre trabalhadoras domésticas negras, Rollins trabalhou como doméstica por seis meses. Ela descreve inúmeros incidentes nos quais seus empregadores a tratavam como se ela não estivesse presente. Em certa ocasião, enquanto estava sentada na cozinha almoçando, seus empregadores tiveram uma conversa como se ela não estivesse lá. Seu senso de invisibilidade se tornou tão grande a ponto de ela pegar um bloco de notas e começar a escrever as suas anotações de campo. Apesar de Rollins ter escrito por dez minutos, terminado de almoçar e voltado ao trabalho, seus empregadores não apresentaram nenhuma evidência de a terem visto. Rollins aponta que:

foi esse aspecto da servidão que achei ser uma das maiores afrontas à minha dignidade como ser humano… Essas atitudes de ignorar a minha presença não eram calculadas, creio, como insulto; eram manifestações da habilidade dos empregadores de aniquilar a humanidade e até mesmo a minha própria existência, a de uma criada e mulher negra (Rollins, 1985: 209).

 

Eu deveria ter anotado aquela conversa e ninguém teria dado a mínima. Eu deveria ter prestado mais atenção nas palavras e feito como Judith Rollins, puxado meu caderno de anotações de campo e registrado tudo para depois ter análises mais preciosas, mais críticas e mais fundamentadas da experiência cotidiana. Mas a memória também é lugar e, infelizmente, essa cena não vai sair tão cedo do meu compartimento de estórias. Vai ficar guardado, vai servir de exemplo em muitos lugares sobre o quão desumanizador processos de trabalho podem ser  sem que as pessoas deem conta disso.  Vejam, não foi uma agressão direta, um palavrão, uma ameaça de mão… O ato de adentrar um espaço e não reconhecer a presença de outra pessoa ratifica todo processo histórico desde à escravização de pessoas africanas e os desdobramentos políticos advindos do comércio ilegal de seus corpos. Kenya Barris (em sua série da Netflix #blackAf) certamente diria: “because of slavery…”

 

by Francisco Zúñiga ‘Caserio norteño’

 

Todo um jogo de corpo, uma não percepção do outro, a escolha automática de quem entraria naquela situação  particular, como se eu não pudesse ouvir nem falar, amputada de qualquer desejo que correspondesse à um perigo da revelação: ela não é capaz, incompetente, imóvel.  E daquele momento em diante, eu apenas fingi estar ali. Cheguei a faltar 9 dias quase consecutivos, porque ao acordar pela manhã cedo, meu corpo simplesmente não reagia,  eu não tinha forças para sair da cama e me arrumar, pegar meu ônibus e chegar no trabalho. Algumas vezes eu saia mais cedo da repartição, me sentia mal e pedia dispensa. Outras vezes eu somente fingia, porque não aguentava mais ficar naquela sala fedendo ao mofo da invisibilidade misturado com o cloro da limpeza do banheiro que, para mim, tinha mais a ver com higiene racial daquele ambiente, do que propriamente  com germes e bactérias. Houve uma ocasião que eu cheguei chorando, parei na porta da entrada… fumei um cigarro, chorando. Ameacei entrar, não consegui. Chorando. Recuei, dei uma volta, compre um café no bar da esquina, chorando. Entrei finalmente, atrasada mas entrei. Chorando estava, chorando continuei. Fui conversar com a figura que gerenciava aquele espaço. Sai da sala pior do que eu entrei. Não estamos mesmo preparadas e preparados para falar sobre depressão, crises de ansiedades e coisas do tipo. Ela me orientou a ligar para  o Centro de Valorização da Vida (que oferece apoio emocional e prevenção do suicídio – 188). Mas não era isso que eu precisava naquela hora, eu só queria que essa tal figura entendesse o que se passava ali, naquele espaço tão próximo mas tão distante dela, que ficava numa sala individual no andar de cima. Em algum momento eu achei que por sermos mulheres negras, da tez clara, trabalhadoras, isso nos aproximaria de alguma forma, e com certeza ela entenderia e tomaria alguma atitude. Mas estávamos (e ainda estamos) em posições sociais diferentes (e obviamente temos opiniões diferentes), e naquele momento, ela fez o que pôde. Sai de sua sala certa de que não voltaria mais àquela casa de esquina. Só que eu precisava, era obrigada a voltar e cumprir mais alguns meses até finalizar o contrato de estágio, ou, arrumar outro trabalho (que não tinha vistas a conseguir tão cedo). Nunca mais voltei na sala dela. Nunca mais falei sobre aquele dia com ela nem com qualquer outra pessoa, exceto pela minha namorada na época, que foi quem mais presenciou esses momentos drásticos sem entender muita coisa também. Achei importante trazer esse dia para o texto, acho que eu tive uma crise de pânico, não sei, nunca mais aconteceu aquilo. Mas hoje eu tenho a certeza de que vivenciar aquele espaço me causou profundos danos psicológicos, sem dúvidas, esse dia do choro foi um dos mais marcantes e o mais pendente de cura.

by Jenny Saville

 

 

 

EXPEDIENTE GORDOFÓBBICO

Entrava às 08h da manhã no estágio. Não dava tempo de fazer um café e comer em casa, eu fazia isso no trabalho. Para minha sorte, tinha uma querida senhora branca que vendia lanches e sucos no prédio. Ela basicamente me alimentava todos os dias. Junto dela sempre ficava as figuras imponentes: uma mulher policial e um homem policial, que revezavam com outras duas pessoas de seus gêneros. Especialmente a policial, vou chamar de Ângela, era magra e negra de pele clara e olhos verdes. Sempre estava muito bem arrumada em seu uniforme da corporação. Todos os dias que Ângela estava no turno de trabalho, ela fazia questão de comentar qualquer coisa sobre os treinos de academia que acabara de fazer, ou sobre a dieta nova que cumpria. Era eu chegar perto que o assunto logo virava treinos, shakes, dieta low carb, gel redutor de gordura, etc etc etc. De início, eu sequer dava atenção: compra meu negócio pra comer e pronto, evidente que ouvia os comentários dela, mas seguia pra minha sala.  No entanto, nas vezes que eu levava almoço cheguei a presenciar comentários sobre minha marmita, desde a quantidade à qualidade: tudo era motivo para um comentário solto supostamente indireto, que chegava diretamente ao remetente: euzinha. Na última vez que ouvi um comentário dela, lembro de responder algo como “você paga minha comida e eu não tô sabendo?!”, e a partir de então, passei a fazer minhas refeições na sala-almoxarifado. Não tinha mais paciência para os comentários gordofóbicos dela quiçá gastar meu latim respondendo às ofensas de quem tinha ojeriza ao meu corpo. Toda manhã, fazendo chuva ou sol, bastava eu chegar, pegar meu negócio para comer que ela soltava qualquer comentário. Depois de umas quatro vezes ouvindo esse tipo de coisa, eu nunca mais comi na cozinha coletiva. Só entrava naquele espaço pra encher minha garrafa de água ou guardar/tirar minha marmita da geladeira. Era um desaforo que eu não estava disposta a vencer, só queria comer em paz e ir embora dali. Depois de um tempo, percebi os reflexos dessas violências: não comia mais em praça de alimentação de shopping, nem em  restaurantes (que eu já não frequentava muito), menos ainda. Comer qualquer coisa no buzu ou no metrô, nem pensar! Eu simplesmente comia em casa. Jamais comia durante o trajeto, qualquer que fosse este, jamais. Lembrei de uma passagem do livro “FOME” de Roxanne Gay, na página 105, em que ela escreve:

 

Quando você está acima do peso, seu corpo se transforma num registro público, em muitos sentidos. Seu corpo está constantemente em exposição. As pessoas projetam narrativas presumidas em seu corpo e não estão nem um pouco interessadas na verdade dele, qualquer que seja essa verdade. Gordura, de forma bem semelhante à cor da pele, é algo que você não pode esconder, por mais escura que seja a roupa que você vista ou o quanto você evite listras horizontais. Você pode tentar ficar invisível. Você pode aprender a ser a graça da festa, para que as pessoas estejam tão ocupadas em rir de você, ou com você, que nem notem o óbvio, que nem se concentrem nele. Você pode fazer o que tiver de fazer para sobreviver a um mundo que tem pouca paciência ou compaixão com um corpo como o seu. Independente do que você fizer, seu corpo está sujeito ao discurso público de família, amigos e estranhos também. Seu corpo está sujeito a comentários quando você ganha peso, perde peso ou mantém seu peso inaceitável. As pessoas são velozes em lhe oferecer estatísticas e informações sobre os perigos da obesidade, como se você não fosse apenas gorda, mas também incrivelmente imbecil, desatenta e iludida quanto à vigorosa falta de hospitalidade daquele corpo. Esse comentário costuma ser camuflado de preocupação, como pessoas que só tem as melhores intenções, de coração. Elas se esquecem que você é uma pessoa. Você é só um corpo, nada além disso, e é bom que seu corpo seja menos.

 

Quando eu digo que esse foi o pior trabalho que eu já tive, é porque afetou dimensões da minha vida que eu acreditava estarem salvas, resguardadas. Mas aquele lance da manutenção da auto-estima ser cotidiano é um mantra que deve ser repetido todos os dias, digo e repito isso para mim mesma pois falho na missão demasiadamente. Não consegui sair ilesa dessa experiência de trabalho. Sai muito machucada psicologicamente, maltrapilha intelectualmente, enfraquecida e esvaziada humanamente. Não é exagero, acreditem. Tudo que narrei acima foram os episódios mais marcantes e possíveis de comentar publicamente, de onde veio esses há muitos outros, mas o principal está aqui.

 

by Slawomir Mikawoz

 

 

Tudo isso para chegar ao babado do processo seletivo da Magazine Luiza só para pessoas negras. Tudo isso para provocar algumas reflexões sobre identidades, opressões interseccionais e ambiente de trabalho. Evidente que Magazine Luiza e Ministério Público estão em campos diferentes, mas se estruturam a partir da mesma fonte: racismo estrutural e institucional. Em que um, só conta com a ação afirmativa de cota para pessoas negras e o outro, está constantemente em busca de outros perfis de profissionais: seja pela compreensão política da garantia de direitos humanos, seja pela compreensão financeira do lucro, as direções estão em vias diferentes. E por vias diferentes não quero dizer melhor ou pior, mas apontar que, embora seja evidente a necessidade de fomentar caminhos para empregabilidade de pessoas negras de forma justa e efetiva, os meandros do cotidiano das relações interpessoais carecem de um “letramento racial” permanente. É ótimo promover iniciativas que acolham as pessoas negras em suas carteiras assinadas, mas o que acontece nos corredores e nas salas individuais também é fundamental de se analisar.

Essa minha experiência no setor público me fez compreender com rigor que as múltiplas faces do racismo permanecerão intactas na maioria das vezes. Como eu poderia denunciar uma situação de racismo como aquela das pessoas entrando na sala não me enxergando? Como eu poderia denunciar o ato racista da funcionária branca comparando nossas peles?! Como explicar isso para uma chefia, no sentido de reivindicar alguma reparação? Notem que eu não escrevi PUNIÇÃO, mas sim, REPARAÇÃO porque acredito em alternativas que não derivem das bases epistomológicas judaico-cristãs para lidar com pessoas e, fundamentalmente, processos de reparação devem vir acompanhados de ações no campo da educação. Eu poderia querer vingança ou algo que o valha, mas é cansativo esse sentimento e, por vezes, só córri por dentro e não modifica o meio em que vivemos. Entendem o que eu digo? Como promover reparação frente a “micro-violências” (e o nome pode ser muito bem outro, me falta vocabulário) cotidianas no ambiente de trabalho?! Fico pensando nessas situações que eu vivenciei e que  muita gente negra também já vivenciou entre quatro paredes de um local de trabalho. Qual é o ponto de partida que será utilizado para confirmar uma situação de racismo ou nega-la? Qual parâmetro será utilizado para medir o nível de reparação prática diante de um episódio de discriminação racial entre pessoas de um mesmo time de trabalho? Quem vai concordar que foi racismo SIM e quem vai discordar? Como as relações se darão a partir de um veredito final?! Será justo para todas as pessoas envolvidas? Pessoas negras terão quais garantias quando reportar uma situação racista?!

by Ro Paulinho – Proteção extrema contra a dor e sofrimento

São muitas perguntas sobre isso e um total de zero respostas. Mas o questionamente precisava sair da minha mente e ocupar a mente de outras pessoas a fim de tentar movimentar os assuntos num sentido analítico, crítico e de afirmação que resguarde pessoas negras tão desejadas nas multinacionais (porque nos órgãos públicos as chances são quase nulas). Sem pretenção alguma de esgotar o debate neste texto, quero pensar estratégias de resistência em ambientes de trabalho porque se estamos tão desejadas e desejados nesse momento, o mínimo que eu espero é que nossas bagagens de vida não sejam anuladas em prol de uma política de diversidade que só chegue até a página 2 e estacione. Se querem pessoas negras “colorindo” as grandes salas de negócios, precisam saber que temos um ponto de vista muito apurado, muito lapidado pelas violências desde a tenra idade  e que qualquer coisa não pode servir como como pretexto de uma mudança efetiva. Podem escurecer as salas de reuniões e os processos seletivos, mas o não dito, os incômodos, as violências em menor escala, as regras mudando quando chegar nossa vez… Ah.. isso requer um profundo envolvimento humano, um comprometimento para vida além dos espaços de trabalho.
Por isso: “Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente.*”

 


*Frase retirada do livro “O Conto da Aia” romance de Margaret Atwood, pag.183.

Foto em destaque do post: Mother’s Milk by @gproblematica on Instagram.