No dia da consciência negra, viramos todos humanos


A prefeitura de São Paulo proporcionou um show ao vivo de “somos todos humanos”. Isso porque eu só cheguei às 20h30, as apresentações estavam rolando desde cedo no Vale do Anhangabaú (em outros pontos também). Vou contar aos poucos.

Na hora que cheguei, um tempo depois que já estava tudo ok no palco, pude ouvir as palavras de força da Leci Brandão, que foi contundente à cada intervalo de música, lembrando que mesmo naquele vale com tanta gente diversa, quem morre nas periferias é o povo preto. Falou da Marcha das Mulheres Negras e do ato racista extremo que passamos lá; gritou que “Nós temos que estar no poder! Nas universidades!”.Também falou sobre a precariedade na educação, lembrando dos professores e professoras com a música “Anjos da Guarda”; não deixou passar batido que todo mês deveria ter essas atividades que se concentram só em novembro. Enfim…Ela foi ótima!
Pra depois chegar o Jorge Aragão, tranquilão, que não falou 1/3 do que Leci falou,  soltou uns “Viva Zumbi!” desanimado e ainda cantou uma música desnecessária, não sem antes se justificar dizendo “Essa música pode parecer machista mas não é… “.  Típico de quem não quer mesmo reconhecer o machismo existente, néan. Nessa hora eu já tava assim, revirando os olhos só aguardando. A música continha aquela velha ideia de que a mulher é quem tinha escolhido aquela vida, e ele (o sujeito da letra) era bom de coração mas que tinha crescido no samba e chegar tarde em casa era a vida dele e ela tinha entender e  recebe-lo com um sorriso. Nada de novo sob o sol: o homem ocupando o espaço público, desfrutando dele, e a mulher reservada ao ambiente doméstico que tudo suporta e nada reclama, ainda tenho que estampar um sorriso no rosto. Ele sabia que a música é machista, mas continuou cantando o velho patriarcado de sempre.
(Pena que eu não consegui achar a letra, mas eu vou descobrir que música é essa! ). Jorge se utilizou de máxima “um outro tempo” pra dizer que a pesar da letra, a música não era machista não porque naquela época a “cultura” era outra. Como se atualmente fosse o contrário: a mulher na rua e o homem em casa. Tantas músicas pra cantar, ele escolheu justo essa numa data como o 20 de Novembro, quando há poucos dias soubemos em números o que já sabíamos na vida real: As mulheres negras são as maiores vítimas do femicídio, e que em sua maioria, vem dos cônjuges! AI ai que bola fora esse senhor mandou, valha-me deusas!

Logo entrou Alcione, toda maravilhosa de verdade e laranja, cantou três músicas, dentre elas aquela “É, você é negão de tirar o chapéu, não posso dar mole senão você créu…”, que consegue reunir muitos estereótipos racistas do início ao fim.  Outra música que podia ficar de fora de um repertório para o dia da consciência negra. A música tem o poder de reforçar a ideia de “malandragem” do negro, principalmente o sambista mas isso se estende pra todos e todas, independente. Também canta a hiperssexualização da negritude que a gente nem percebe e samba miudinho no coro!

“A sensualidade da raça é o dom, é você meu ébano é tudo de bom”.

Foda! Essa música era a última que eu esperava ouvir… Mas vá lá, quem sou eu pra questionar a deusa Alcione, né? Mas me incomodou muito, sabe… Fiquei pensando se eu estava vendo pelo em ovo, se era um exagero meu de não consiguir parar de ver racismo em tudo!! Também pensei nessas divindades do samba, em como eles perpetua ideários racistas pelas músicas e se isso era mesmo passível de se questionar, afinal de contas, são pessoas negras, com uma trajetória de vida, de ascensão numa sociedade racista e tudo mais.
O que me incomodou foi ser cantada nesse dia de hoje, que a gente não precisava ouvir que somos sabor do pecado. Chato isso, né… Não conscientiza em nada, só reforça o imaginário racista sob as pessoas negras.

Depois o Jorge Aragão voltou ao palco, cantou mais uma música e saiu sem ser aplaudido! Aí entrou a apresentadora pedindo aplausos, meio que desesperada.

Foi aí que o show de “somos todos humanos” começou.

Ela começou mais ou menos assim: “Eu não ouvi os aplausos! Vamô aplaudir gente!! Os afrodescendente merecem esse show! Vocês merecem! Nós merecemos esse show, essa celebração! Vocês podem achar estranho eu dizendo ‘nós’…acontece que somos América Latina! Foi como eu disse mais cedo… Temos sangue de negro, de índio, de europeu! Ninguém é 100% nada. Por isso eu tô muito feliz hoje de estar aqui… “ Aí ela chamou um cara, um dos organizadores do evento, que agradeceu e reforçou as ideias dela. Aí eu já tava no terceiro pedido “amiga vamo embora?!”. E fui. Fomos, eu e a minha amiga Dara, bem fulas da vida porque ouvimos ao vivo que ~ninguém é cem por cento nada~ no dia da consciência negra!. Eu fiquei só imaginando o que ela deve ter falado durante o dia todinho ali! Chega a me arrepiar os braços, credo!

Uma oportunidade de disseminar tantas coisas naquele palco, pra um público majoritariamente, PRETO, mas que preferiram botar uma mina avulsa, com um discurso super racista desses! Saldando a miscigenação, o ~somos todos humanos~, só faltou ela falar que não deveria ter um dia da consciência negra, faltou pouco, mas deu muito bem a entender! Um momento pra atiçar a população sobre o racismo e as desigualdades que ele provocar foi usado pra silenciar a identidade negra, a luta incessante de quem tem carrega no corpo todo a resistência secular, carrega ancestralidade de pessoas que foram escravizadas. Usaram esse palco pra deformar o sentido político da data (como sempre fazem) e transformar num puro ode ao mito da democracia racial.

Eu voltei pra casa fervendo de raiva. Sério! Como podem ludibriar desse jeito, em pleno dia de luta, político e de denúncias! Tudo bem proporcionar shows com artistas negros/as, muito legal! O povo tava super feliz (e isso é bem louco também!), dançando e cantando tudo.
Mas usar o espaço pra dizer que somos todos iguais é muito pesado! Nesse dia lembram-se que somos América Latina e que temos uma história, pra silenciar o povo negro que é 100% SIM e só quem é, sabe. Aí a miscigenação cai como uma luva, como sempre, embranquecendo a data e a luta de um povo que tá aí na resistência desde que aqui fomos lançados à sorte, relegados ao sistema colonial mais presente do que nunca, e marcados à ferro  -literalmente-. Aí que no dia da consciência negra, viramos todos humanos, como se nada tivesse acontecido!

De que adianta proporcionar atividades pela data do 20 de Novembro, se bota no palco uma pessoa que vai defender ideias racistas? Bela bosta.  Preocupação política com que se é falado no palco não tiveram porquê?! Não é interessante que uma população se reconheça como negra, nem na data eleita para tal. Essa é só mais uma das vezes onde o Estado nos diz “vamos dar aqui uns showzinhos pra vocês, pretinhas/os, pra vcs não reclamarem, mas não vai ter consciência racial nããão, ok”.

Eu quero muito acreditar que os artistas que se apresentaram ao decorrer do dia tenham desempenhado um papel de visibilidade da luta negra, quero muito crer nisso! Mas a moça apresentando foi o fim da picada pra mim. Eu só queria que ela parasse de falar aquelas merdas, porque quem morre diariamente pelo racismo é 100% preto! Não somos latino-americanos na hora de negarem emprego por causa do cabelo, pela cor da pele; não somos latino-americanos quando muitas de nós são paradas na rua e perguntadas “Você é africana? Nem parece brasileira”; passamos longe de ser latino-americanas nas estatísticas de femicídio, são as NEGRAS no topo da lista! Os jovens negros mortos diariamente pela polícia em chacinas e rotas de extermínio, não são meramente  jovens latinos! Reduzir tudo à América Latina é invisibilizar e descartar  quem botou de pé uma nação, à muito custo, na base da chibata!

Presenciei um momento tenebroso e totalmente descolado da realidade. Comemorando a consciência negra com o embranquecimento: é desse jeito que o racismo trabalha também. Da música inebriante que faz o corpo tremer quase que instantaneamente, até à fala de despedida.

E que se foda os pretos morrendo, não comem, não tem moradia, não tem acesso à saúde, educação… Que se foda. Sejam pacíficos. Dancem muito, até seus pés não aguentarem mais. Beba! Beba muito, até a embriaguez tomar conta. Volte pra casa na madruga, ou continue na rua se você não tem uma casa. Ano que vem tem mais! Mais do mesmo. Racismo.

Enraiveço!

Sem mais.