Na bruma leve das paixões que vêm de dentro: ser lésbica na família – reflexão e desabafo
O que mais dói é essa indiferença, é o silêncio, é o olhar desviante pra outro lado, é a ideia de que ainda pode “mudar”. O que me dói cada dia mais é perceber que eu não serei vista como igual, não terei direito a ser da família nem a participar de nenhuma festa a menos que eu esteja sozinha: sempre sozinha. Porque é isso que esperam de você como lésbica, que não apareça em casa com um mulher ao lado; descrição e sigilo serão pedidos a todo momento; o sentimento de culpa pela sua existência será persistente até sabe-se as deusas quando.
Essa talvez seja a punição mais pungente e dolorosa que eu tenho recebido desde que vivencio minha lesbiandade. Viver à parte, à margem do afeto, da convivência; vivo à parte da família. Família essa, de sangue, que nem parece que tenho, mas que todo mundo lembra da minha existência quando é pra dar um exemplo ruim, criticar a forma como me visto ou como estou gorda. Para todos os apontamentos de chacota e desdém: existo! No mais, ignorem-a.
Vivo na clandestinidade intra, no núcleo família, na suposta “base” de todo ser humano. Sou aquela que eles supõem não ter histórias pra contar, que supõe não ter sonhos, nem afeto, nem namoros, nem planos futuros. Aquela que ninguém ouve porque ouvir minhas vivências requer empatia, acima de tudo, e respeito -lógico. Sou aquela que não participa dos comentários sobre relações afetivas, que tem que ficar quieta sobre isso porque corre o risco de, das duas uma: ou ser rechaçada ou ser ignorada. Não sei se há uma opção pior que a outra. Mas sei que viver assim é carregar o fardo de não existir pra quem diz que se importa com você. Pra quem te abraça no Natal mas passa o ano inteiro te rejeitando de inúmeras formas.
Fui criada nos moldes antigos, desses que a gente tem que pedir benção para todas as pessoas mais velhas em sinal de respeito. Desse tipo cristão servil bem regradinho. E olhando pra essa família, fico me perguntando o que eu faço nesse meio. Já me disseram que família não é a de sangue, mas sim, as pessoas que nos aliamos ao longo do caminho, com respeito e carinho mútuos, com troca e acolhimento; eu não discordo. Família que importa pra mim é realmente esta que venho fazendo ao longo da minha jornada, pessoas que se aninharam a mim, pessoas que eu me aninhei a elas como numa arca de Noé humana, cheia de gente como eu -rejeita por seus consanguíneos-.
Mas algo que me inquieta é saber que, mesmo tendo outra família, essa de sangue não deixa de existir, e que eu não posso me dar ao luxo de romper com esses laços tão frágeis: minha família é preta, pobre, gente humilde que veio da roça, que passou a infância capinando terra e limpando a casa grande. Minha família veio da senzala, do terreiro de terra vermelha batida, do fogão à lenha, que brincavam com bonecas de sabugo de milho, minha família tem resistência: restaram cinco, cada um/a com uma história diferente de sobrevivência que eu ainda conheço pouco. A violência desde a tenra infância e as dificuldades ao longo da vida impediram que afetos fossem estabelecidos, que respeito fosse premissa pra qualquer conversa. Família essa que nem se enxerga como preta, não fazem ideia do que significam socialmente, tampouco estão preocupados com algo nesse sentido: eles só querem continuar sobrevivendo. Ninguém tem curso superior, mal terminaram o ensino médio. As mulheres da minha família tem cravado na pele histórias de dor que só elas sabem. Trabalharam a vida toda como domésticas em condições desumanas, que gerou consequências físicas em seus corpos e suas mentes. Aos homens: subempregos, o caseiro da fazenda do doutor à motorista de usina; de morador de rua à usuário de drogas e catador de latinha. Como é que eu meto o pé nessa gente e faço eles engolirem minha visibilidade lésbica? Como eu explico que mulheres amando mulheres existem desde que o Mundo é Mundo só que atualmente nós declaramos isso em público?! Como eu rompo com a minha própria história se preciso dela pra não esquecer de onde vim, o que passei, quem eu sou?!
Respiro fundo, me aprumo, compreendo a dimensão de classe e raça nessa situação toda. Minha decisão é de viver um momento de cada vez, sem impor ou exigir deles algo que nunca virá. Não convivemos diariamente, não nos falamos com frequência também, mas no fundo desejamos o bem um do outro. Então eu me apego no que já construí, no que sou verdadeiramente, e sigo. Não há o que temer se afinal de contas eu tenho família! Cada uma com sua particularidade de convivência, cada uma com um jeito diferente de lidar que eu tenho aprendido cotidianamente, cada uma com seu peso de importância na minha vida; o que não encontro em uma família, encontro na outra. Esse é o meu maior conforto atualmente.
Mesmo difícil de acontecer visibilidade lésbica dentro de casa, eu entendi que os mecanismos para faze-la tem de ser outros, mais minuciosos, nos detalhes. E por enquanto eu não posso balançar bandeira LGBT por aqui, mas sigo mesmo assim porque todo sentimento de ser menosprezada e estar à margem é resultado constante dessa sociedade racista e heterocentrada; é contra algo muito maior que eu tenho que lutar e não exatamente contra essa família que é tão alvo quanto eu. Me lembrar disso é um movimento crucial, que me devolve forças pra saber como e quando me colocar em situações lesbofóbicas e excludentes, forças pra saber usar as palavras e até mesmo recuar, sair da cena ou gritar se for preciso.
A dor se transforma em força.
A punição é recebida como munição pra ser usada no momento preciso.
O meu desejo é que todas nós, lésbicas, bissexuais, mulheres que amam mulheres, possamos ter força pra lidarmos com nossas famílias de sangue, de coração. Que essa força seja também inteligência-estratégica para sabermos a forma que seremos visíveis nesse núcleo familiar. Que a força também se faça presente no momento em que decidimos romper: cada uma sabe onde o calo aperta, cada uma sabe como prosseguir… e que possamos construir outro tipo de família, bem diferente destas que agora nos excluem, uma família lesbiana cheia de amor, carinho e compreensão é possível.
Força pra nós! <3
Tenho vivenciado exatamente isso, o que é extremamente doloroso.
Suas palavras me trouxeram paz e mais força pra continuar nessa luta. OBRIGADA! Continue a nos empoderar!