É na prática social que sabemos quem é branco e quem é preto


O recente alarde perante a portaria lançada na terça-feira (2) pelo Ministério do Planejamento,Desenvolvimento e Gestão (MPOG) , estabelecendo orientação normativa acerca de comissões específicas para verificação da autodeclaração racial emitida por candidatas/os de concursos federais,  evidenciou mais uma vez como a branquitude brasileira se incomoda com avanço dos “outros”. Vozes para defender a tal “democracia” não faltaram, de jornalistas da Falha de SP à mídia ‘alternativa’ no corpo de Jornalistas Livres, passando por blog do Sakamoto e blog da Maria Frô no afã de salva-guardarem a população preta da malfadada notícia via governo golpista, sem se dar o menor trabalho de uma busca na internet só pra contextualizar –a si mesmos, primeiramente– antes de disseminar equívocos contraproducentes. E não bastou o movimento impulsivo, teve que rolar comparação ao nazismo e ao apartheid na África do Sul. Pois é, minha gente, desonestidade intelectual é a certeza da palavra escrita sem imaginar que seria interessante uma consulta básica à situação atual das cotas raciais.

Estive analisando todos os textos publicados e o mote contrário à normativa supracitada, recaiu sempre nas pessoas pretas, como escreve Maria Frô em seu blog  “(…)Os golpistas não querem de modo algum que tenhamos funcionários públicos negros servindo o Estado na mesma proporção que existe de pessoas negras na sociedade brasileira.(…)” deixando nítido seu deslocamento com a pauta em questão e destacando qual seu ataque, levando à reboque a luta do Movimento Negro como se precisássemos de alguém para nos dizer o que está acontecendo: A síndrome da Princesa Isabel.

Engraçado é que ninguém, nenhuma autora ou autor se quer fez menção ao fato das pessoas brancas estarem se utilizando de um recurso destinado à população preta. Menos ainda se lembraram de questionar que são essas pessoas usurpando vagas destinadas à pretos, é que deveriam sofrer sanções e não o contrário.
E nesse ponto, para elucidar minha crítica e quem sabe me fazer entender melhor, busco em Liv Sovik um abraço de lucidez pois não está sendo fácil:

“(…)No Brasil, particularmente, a prática social do branco está permeada por discursos de afeto, que aparentemente religam setores sociais desiguais, mas a hierarquia social continua vigente e, em um conflito eventual, ela reaparece, enfraquecendo a posição de pessoas negras. O valor da branquitude se realiza na hierarquia e na desvalorização do ser negro, mesmo quando “raça” não é mencionada. A defesa da mestiçagem às vezes parece uma maneira de não mencioná-la. A linha de fuga pela mestiçagem nega a existência de negros e esconde a existência de brancos.(…)”

Extremamente atual e parecendo que foi escrita para esse momento político tão importante e ao mesmo tempo frágil. Portanto, reivindica contrária a necessidade de comissão avaliadora de concurseiras/os exatamente quem não se enxerga como pertencentes à branquitude, que nesse momento, sacodem o tapete cheio de poeira evocando uma ancestralidade que não condiz com a sua aparência.

“Ninguém é branco no Brasil” foi o embasamento argumentativo por de trás das matérias, além é claro da vontade de criticar um governo a todo custo se esquecendo que essa normativa aprovada só foi resultado de uma luta ininterrupta do Movimento Negro Brasileiro, que desde a implementação das cotas raciais nos concursos públicos  (pleito e mérito nosso também, bom frisar!) já sabiam que ia dar merda e já previam a necessidade de um acompanhamento e verificação de quem seriam essas pessoas autodeclaradas negras adentrando aos cargos públicos. Não somos idiotas e sabemos exatamente do mito que escorre dos bueiros desse país, de que “somos todos miscigenados” e, portanto, temos os mesmos direitos. Aí é que se engana completamente quem faz esse tipo de colocação. Ainda somos vistos e separados entre pretos e brancos, mesmo se você for oriental, o privilégio que uma sociedade racista vai te dar é a beness  de não ser preto (de não se parecer com um!), por isso você vai ter outros estereótipos e características construídas social de forma (até) positiva; mesmo se você for indígena mas seus traços faciais e corporais se aproximarem de uma aparência “branca”, esqueça! A branquitude te engole e te assimila, porque ela mostra o quão vantajoso é NÃO ser preto! Evidentemente que ela vai fazer questão de te colocar “no seu lugar” enquanto indígena — mas isso também vai ser de acordo com seu fenótipo pois sua ancestralidade e pertencimento étnico sempre estarão na sua trajetória, mas nada isso vai ser julgado antes da sua aparência—  vai te permitir certos acessos e ascensões que jamais tolerariam em se tratando de uma pessoa preta. Entendem o quanto é complexa a situação toda? O racismo no Brasil vem se aperfeiçoando em níveis grotescos mas não deixou de ser o fenótipo seu principal meio de humilhar, assassinar, desqualificar, maltratar pessoas, portanto, uma medida como esta – a normativa- não tem como ser a pretensa resolução de todas as fraudes, além de que, não podemos esquecer que tal mecanismo só pode ser melhorado quando implementado no dia-a-dia, observado, averiguado e problematizado de acordo com o contexto. Nem por isso devemos eleger como solução plausível a retirada das comissões avaliadoras e até mesmo as cotas raciais, como já foi sugerido por alguns queridos das mídias por aí. Vejam como são as coisas: as pessoas pretas são tão deslegitimadas nessa sociedade, que nem nossas tentativas de manter e aprimorar uma ação afirmativa para ser condizente com a realidade, que possa cumprir seu papel político de instrumento de -ínfima, porém necessária-  reparação racial, é levada em consideração. A branquitude se quer se coloca a pensar junto com a gente! Mas na hora de se dizer “aliados” vem todo mundo sorrir pra fotinha, né? Assim é fácil. Agora quero ver se retratar publicamente pelo equivoco publicado…. Estou sentada até agora, não apareceu nada. Nem dos esquerditas supostos aliados à causa. Não me espanto mais.

Rosana Paulino - "As filhas de Eva" série ADÃO E EVA NO PARAÍSO BRASILEIRO. Técnica mista sobre papel azul. 49,5 x 34,5 cm. 2014

Rosana Paulino – “As filhas de Eva”
série ADÃO E EVA NO PARAÍSO BRASILEIRO. Técnica mista sobre papel azul. 49,5 x 34,5 cm. 2014

 

 

SOMOS TODOS MESTIÇOS pra acessar cargos públicos e vagas em universidades públicas,  e aí reside o afeto de buscar na colonialidade o reformado, então, mito da democracia racial tão presente na sociedade brasileira, onde os brancos desfrutam de serem brancos e até mesmo quando  querem se dizer pretos, e não aceitam ser colocados na berlinda numa aferição de suas caras como documento legal daquilo que assinalou anteriormente.

Porque a branquitude tem medo da comissão avaliadora de fenótipo a ponto de questionar sua existência em detrimento de criticar um governo golpista? Porque os brancos fraudulentos não foram mote para um conteúdo de denúncia? Porque não se enxergam enquanto branquitude mantenedoras do status quo ? Qual a dificuldade se são todos dotados da racionalidade hegemônica, não é mesmo?!!!

Sovik novamente me emociona tamanha sua lucidez em consciência do que se é:

“(…)A branquitude é atributo de quem ocupa um lugar social no alto da pirâmide, é uma prática social e o exercício de uma função que reforça e reproduz instituições, é um lugar de fala para o qual uma certa aparência é condição suficiente. A branquitude mantém uma relação complexa com a cor da pele, formato de nariz e tipo de cabelo. Complexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente da genética, mas do estatuto social. Brancos brasileiros são brancos nas relações sociais cotidianas: é na prática -é na prática que conta- que são brancos. A branquitude é um ideal estético herdado do passado e faz parte do teatro de fantasias da cultura de entretenimento.(…)”

E é justamente pela branquitude teimar em não se reconhecer nas práticas sociais como tal, ficam aí buscando em linhagem de DNA a porcentagem africana ou ‘ameríndia’ como convencionou o jornalista lá, pra ridiculamente sugerir solução a essa questão toda: das duas, uma: podemos acabar com as cotas raciais (já que ninguém reconhece que os brancos é que configuram a “falha” no sistema) OU aplicando cotas sociais: Um gênio do retrocesso! Fora da casinha é o termo que muito se adéqua a esse jovem que não sabe do que tá falando.

E aproveitando o ensejo, respondo ao jornalista Sakamoto, algumas de suas indagações: Não serão os membros deste governo golpista a se sentar nas comissões avaliadoras  dos concursos públicos, querido, sugiro você buscar pelo histórico e atualidade das cotas raciais para saber em que pé estamos. E BREAKING NEWS! Já existe uma escala de cores muito bem definida no Brasil, mas você tá por fora, vou só contar: quem é claro não morre com facilidade quanto quem é escuro, pelas mãos da polícia militar, por exemplo. A escala é de cores e é decrescente: do maior para o menor, onde o maior é branco e o menor é preto, onde a vida do branco importa e a vida do preto não. Essa é a escala de cor em amplo funcionamento no Brasil já tem… hm… sei lá, uns 358 anos! Basicamente. Não atoa que as pessoas em condições análogas à escravidão, são majoritariamente pretas, não é?! E que a cada 23 minutos um jovem preto é morto pela polícia. E é crescente o assassinato de mulheres pretas, 54%! A escala funciona assim, e até mesmo pra quem fica meio lá meio cá, o sistema sabe direitinho como nos diferenciar e delegar humanização maior ou menor a depender exatamente do seu FENÓTIPO! Dos seus traços faciais e corpóreos. Ninguém pede xérox de árvore genealógica antes de te preterir ou de te bonificar por algo.

Parafraseando Sovik quando ela escreve que é na genética que somos todos mestiços, não na prática social, pois nesta prática só se desfruta de um bem viver, livre de humilhação e assassinato quem é BRANCO, visto e privilegiado como tal; é na prática social que foram estabelecidas as identidades raciais forjadas no bojo da escravização de pessoas negras e que vocês brancos se eximem do auto-reconhecimento racial enquanto branquitude e continuam contribuindo para o racismo institucional e ainda por cima, ficando tranquilos jogando terra em nossos olhos, pisando nas nossas trajetórias e ignorando nossas demandas pleitadas por nós.

É só  vocês serem  brancos e assim querem se manter sem nenhuma auto-critica -vulgo: olhar o próprio rabo-  ainda tem a pachorra de usar nossa luta, nossa dor em vão pra criticar governo golpista que não precisa de pretos sendo manobrados pra reforçar a ilegalidade desse governo interino, ele já o é por si só! Só que essa medida não nasceu neste governo, tampouco vai ser retirada dele, viu?! Se atentem!
Eu sou totalmente contra esse governo impostor. Mas é preciso lembra-los sempre que o Movimento Negro está em cima vigiando o sistema de cotas raciais como quem vigia o berço da criança amada que repousa ali, onde é preciso um fôlego olímpico no revezamento de cuidados para ninguém toma-la de nós, como costumeiramente vocês sabem fazer, simbólico e fisicamente.

Se responsabilizem por aquilo que vinculam, não sejam desonestos, e por favor, aprendam rápido a usar o google!
Não antes de se reconhecerem e conscientizarem enquanto pertencentes à uma branquitude brasileira, combinado?!

Sigamos.

[SUGESTÃO DE LEITURA, mas é pra ler mesmo, viu?! ]

1) O branco-objeto: O movimento negro situando a branquitude por Lourenço Cardoso
<http://www.observatoriodonegro.org.br/…/o-branco-objeto-o-m…>

2) Branquitude X Branquidade: Uma análise conceitual do ser branco por Camila Moreira de Jesus
<http://www3.ufrb.edu.br/…/Branquitude-x-branquidade-uma-ana…>

3) Aqui ninguém é branco: hegemonia branca no Brasil. (2004) por Liv Sovik. (livro)

4) Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana por Lia Vainer Schucman <http://www.teses.usp.br/…/tde…/publico/schucman_resumida.pdf>

5) Pontuações e proposições ao branco/a e à luta antirracista: Ensaio político-reflexivo a partir dos estudos críticos da
branquitude por Joyce Souza Lopes
<http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v11_joyce_GV.pdf>

*Foto destacada: Paulino, Rosana.Série Bastidores. (Xerox transferido sobre tecido, com bordados), 31,3 cm x 310x 1,1 cm. 1997.