Amor também é uma história de cor


Na trajetória longa e cheia de mistérios que é me entender como uma pessoa negra, sempre chego a uns limites confusos sobre o que sinto, porque sinto. Durante muitos anos me entendi como uma “negra subjetiva”, que apesar da história de negritude, luta e resistência da minha família, havia se extinguido na minha pele clara o negror, e como dizem meus documentos: branca. Não cabia me considerar negra uma vez que não sofria racismo, e não era capaz de enxergar o racismo nas propostas de alisamento do cabelo, no elogio que ouvi tantas vezes quando criança: tão lindas as sardas, imagina se fosse ruiva!, na vergonha que eu tinha do meu nariz. Sobretudo, ser gorda e sapatão ocupou quase toda a minha percepção de corpo e existência até entender que isso não era um problema – o mundo é que é problemático – e poder sentir minhas outras subjetividades.

Revisitando Cam, Luara Erremays

Ainda é recente a percepção sobre ter aprendido a ser mulher com mulheres negras, sobre como a história das que vieram antes de mim se repetem no meu corpo, no meu sentir, na minha trajetória. Aprendi a amar com mulheres negras, herdei sem saber umas dores antigas, coloniais, que aprisionam o ventre, os sentires, as asas. Às vezes me perco pensando nessa procura por um lugar que nunca me aquieta, essa saudade sincera de um mistério que não enxergo – não me caibo aqui e nem em lugar nenhum.

Aprendi a amar com minha avó nunca mimada, endurecida para sobreviver, resistente como uma rocha, capaz de suportar as maiores dores do mundo sem derramar uma lágrima. Que cuida anos e décadas de gerações de homens, meninos, e também de nós poucas, que demonstra amor e cuidado na casa limpa, na roupa passada, na comida feita para agradar. E que se contenta com qualquer coisa, ainda que seja nada, embalada pela certeza da vida eterna, do descanso eterno no paraíso.

Aprendi amor com a minha mãezinha que sozinha me criou, sozinha atravessou os anos de caos e fúria que eu fui, que não abaixou a cabeça para precisar de um homem. Minha mãe, uma haste fina, permaneceu em terríveis ventanias com seu corpo frágil, envergando a todo lado sem nunca quebrar. Que me ama com durezas e rigor dos discursos, que me ama com as palavras lapidadas e coração bem aberto pra me compreender.

Delas recebi os dons que abrem meus caminhos, a mão para o tempero, o verbo lapidado, uma teimosia solitária de quem sabe: a companhia e o amor tantas vezes vem carregados de pesos enormes, insuportáveis, mais nos afundam que nos dão asas, então fechadas, herméticas, mudas caminhamos. Nós contra o mundo. Mas também somos moles e muito fácil rompe-se a casca, expondo a doçura, nossos sorrisos carinhosos.  

Então gosto e cuido, como uma enorme galinha que vai botando para baixo das asas os que me cabem e os que não. Divido minhas posses ainda que sejam nada, nino no colo e na grama os loucos que tem medo do escuro. Sinto a grande missão de fazer bem a quem me cerca, e ouço a voz da avozinha, tão pequena: não peço nada. Se alguém sentir de me ajudar, estou aqui. Minha avozinha rocha que sempre ampara todos que cambaleiam.

Fui aprendendo a sentir prazer por fazer meus amores felizes, então cozinho cafés da manhã, almoços, jantares, sobremesas e mimos para ver sorrisos, cuido da saúde, faço chás, cafunés, inalações. Mas para os outros, e meu corpo padece, a espera de uma atenção que raramente vem. Tantas vezes apelidada de “mãe” pela galera do convívio cotidiano, me sinto como uma fonte de cuidado perene, indivisível e inesgotável, que não precisa de manutenção, constante e disponível a quem tem sede.

Proteção extrema contra a dor e o sofrimento 2, de Rosana Paulino

Acontece que ficar perto das raízes evidencia as feridas, os ciclos, as repetições. Vejo nas minhas meninas os comportamentos que repito na história e na carne, que me sangram, então atento para os salseiros em que meto, e não aceito mais quem deseja, pede, suga e leva embora sem ter cuidado às minhas fragilidades. Não quero, não posso, não vou seguir dando o que não tenho, cedendo minha energia de cuidado para quem não me enxerga, a quem não importam minhas subjetividades.

E quando me nego, sou feroz, porque me cansou essa eterna coadjuvancia do meu próprio deleite. Tenho dentes e raiva de muitas gerações de mulheres que servem. Acaba em mim essa repetição, não só por mim, mas por cada uma delas, de boca calada, de trabalho pesado, de subjetividade negada. Faço questão dos meus direitos todos, quero falar, ser ouvida, ser vista, ser amada. E não há culpa possível nisso.

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Descobrir-me artista também foi me permitir o prazer de ter minha voz amplificada e ouvida. Histórias que começaram com papéis dobrados, se quiser saber de onde vem e pra onde vai, leia aqui: Nega Preta e RG.