A visibilidade que nos faz tão vulneráveis, é também a fonte de nossa maior fortaleza


Lançamento do documentário “Eu sou a próxima” produzido pela Coletiva Luana Barbosa,  acontece nesta quinta-feira, 13, na Ação Educativa em São Paulo. A entrada é um kg de alimento não perecível que vai para as pessoas moradoras da Ocupação Alcântara Machado; os ingressos serão distribuídos a partir das 18h.  No local também haverá creche para as crianças ficarem enquanto as mães assistem ao documentário.  Você pode saber mais sobre a Coletiva Luana Barbosa pela página no Facebook e saber mais informações sobre o evento aqui. E no sábado (15), o documentário será lançado no Rio de Janeiro, no evento “Existências Lésbicas: por Luana Barbosa, por todas nós”

 

Divulgação/ Coletiva Luana Barbosa

Já tem 1 ano que Luana Barbosa foi executada pela PM de Ribeirão Preto. Ela, tão cheia de sonhos e desejos, assim como nós  — eu aqui, você aí que me lê e que também é sapatão; teve a vida interrompida bruscamente por dois homens que ficaram impunes, pois a balança da justiça nunca pesa o que devia, principalmente quando se trata de pessoas negras nesse país. A história de vida e morte da Luana Barbosa ecoou por muitos lugares mas nada foi suficiente para que o processo fosse julgado na justiça comum (civil), e tão logo seus assassinos ficaram impunes. Mais 2 responsáveis foram para longa lista de PM’s que tem como prática recorrente a abordagem violenta contra pessoas negras e, não raro, resultam em mortes que simplesmente não são levadas em consideração. É uma dor coletiva, posso dizer, essa de saber todos os dias que nossas vidas não valem nada, que o sofrimento de mães, de famílias inteiras, não valem o cumprimento da lei. Parafraseando Vilma Reis, o que tem no fundo do oceano que nos une, Brasil e África, ainda é um grande cemitério, onde o luto é verbo e ação de enfrentamento, porque cada uma que se vai, são dezenas de outras que se levantam contra a violência desenfreada do Estado.

É nesse cenário de desumanização de vidas que chega o lançamento do documentário “Eu sou a próxima”, tocando nessa ferida exposta que só a gente sente, mas que precisa ser sentida por todas as pessoas nesta sociedade. A comunidade lésbica não tem morrido de causas naturais, nem de acidentes, bem como a comunidade negra também não. Somos alvo, a guerra declarada é contra toda uma população sistematicamente subalternizada, e a realização de um documentário registrando agressões e mortes de lésbicas, sobretudo as negras, reflete um canhão de luz sob nossas vidas que são continuamente escamoteadas pelos movimentos sociais da esquerda…. Que ainda acha que pode falar de classe sem falar de raça, que continua achando que LGBT é só um conjunto de letrinhas à parte. As práticas heterossexuais e racistas seguem vigentes, nos impondo um cala-boca a cada debate. Não esperam que sobrevivemos, e esse filme é a materialização da sobrevivência e resistência numa outra linguagem, que com certeza é capaz de chegar mais longe do que qualquer grito de microfone. E eu desejo que esse filme se espalhe, multiplique, encoraja outras lésbicas a falarem e se auto-organizarem. E sobre isso, Audre Lorde nos abençoa com a intimidade de uma amiga de longa data:



“(…) No silêncio, cada uma de nós desvia o olhar de seus próprios medos – medo do desprezo, da censura, do julgamento, ou do reconhecimento, do desafio, do aniquilamento. Mas antes de nada acredito que tememos a visibilidade, sem a qual entretanto não podemos viver, não podemos viver verdadeiramente. (…) Ainda dentro do movimento de mulheres tivemos que lutar, e seguimos lutando, para recuperar essa visibilidade que ao mesmo tempo nos faz mais vulneráveis: a de ser Negras. Porque para sobreviver nesta boca de dragão que chamamos América, tivemos que aprender esta primeira lição, a mais vital, e não se supunha que fossemos sobreviver. Não como seres humanos. Nem se suponha que fossem sobreviver a maioria de vocês, negras ou não. E essa visibilidade que nos faz tão vulneráveis, é também a fonte de nossa maior fortaleza. (…)” Audre Lorde, 1977

 

 

“Sense sapatonic” – by Annie Ganzala, 2017

 



Para tanto, trazer ao palco da história atual os nomes e as histórias de lésbicas negras que foram assassinadas por motivação lesbofóbica e racista, é romper silêncios inquisitórios e sufocantes. É também questionar a forma como lidamos com a morte, ampliando esse sentido e nos aprofundando em conexões que as vezes nem sabemos que existem entre nós, mas estão lá. Mesmo sem assistir ao filme, eu vejo esse momento também como um reafirmação da nossa humanidade que justamente sofre violações diversas pelo fato de existirmos; é essa via de mão dupla que ora nos invisibiliza ora nos nos enxerga só para matar. Esse filme é uma mensagem explícita de que enquanto vivermos haverá luta, e quando uma de nós morrer, o luto e dor será transformado em força pois continuaremos lutando contra essa máquina mortífera. Não somos só vítimas, somos sujeitas dessa coletividade forte que se vira contando umas com as outras. Acredito que é o momento de não engolir mais pequenos silêncios que nos enchem de dor por dentro.

 


“(…) Porque a máquina vai tratar de nos triturar de qualquer maneira, tenhamos falado ou não. Podemos nos sentar num canto e emudecer para sempre enquanto nossas irmãs e nossas iguais são desprezadas, enquanto nossos filhos são deformados e destruídos, enquanto nossa terra está sendo envenenada, podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo.(…)” Audre Lorde, 1977



Para que Luana Barbosa, Brenda Lemos, Priscila Aparecida dos Santos, Veronica de Moura, Diana Dias,  Fabiane Hilário, Mayra de Souza, Luana Costa, Carmel Lhkz, Bruna Yuri Sevilha e outras lésbicas que estão em anonimato, não sejam esquecidas.”Eu sou a próxima” com certeza pode ser o instrumento de luta e alavanca impulsora para que estes nomes fixem nas nossa mentes e  nossa ação transformadora. O documentário será fundamental para a luta anti-racista e anti-lesbofóbica, mas não somente, é um registro cinematográfico político, que registra uma época, cujas personagens manteremos vivas, porque a qualquer momento poderemos ser as próximas. 

 


Imagem destacada: by Annie Ganzala