Precisamos falar sobre compulsão alimentar (parte 1)
Tenho sentido a necessidade de falar publicamente sobre compulsão alimentar. Mas chega um assunto tão delicado, tão difícil de ser investigado, além de entrar no pacote “doença de mulher”, vulgo gordinha tensa. Há semanas elaboro, penso e nunca sai. O que dói tanto? Por que não sai da cabeça?
Escrevo isso pensando em pessoas como eu, minas cis gordas desde a infância que passaram a vida toda, ou quase, fazendo dietas, emagrecendo e engordando, sem se olhar no espelho, se odiando completamente por ser gorda. Provavelmente, tem muitas outras pessoas que se afetam com a compulsão alimentar e nem imagino. Tem as gordas maravilhosas que apenas passam por cima dessa gente mesquinha e não se afeta (sério, eu admiro tanto vocês).
Além disso, certamente é forte a pressão da mídia sobre o gênero feminino e a imagem distorcida sobre o próprio corpo é generalizada, mas eu estou falando de gordas que não cabem nos manequins, nem nas propagandas, nem nos filmes. Com seios tão macios que desafiam bojos duros e redondos, barriga que se sobrepõe em camadas, um paraíso de texturas, que não só as pernas encostam uma na outra, como seguem coladas até pertinho do joelho e são de uma cor secreta na parte interna, que tem adoráveis dobrinhas antes da cintura. Eu queria abraçar cada pessoa que usa “números especiais” (nossos números são absolutamente normais), cada pessoa que precisa descobrir cada dia a lindeza do espelho, o prazer de existir na própria pele. Queria poder falar sobre esses segredos inconvenientes, esses elefantes (!) na sala de estar.
Queria falar com essas pessoas, porque demorou bem uns 25 anos pra eu ver outras minas que nem eu falando de corpo, prazer, afeto, e chegar a me descobrir corpo, beleza, possibilidades. Cada dia uma gorda mais maravilhosa que a outra, tanto afeto nas peles, nos sorrisos. Mas volta e meia só sobra em mim a adolescente apavorada desejando ser invisível, mesmo. Estou há semanas com eventos diários de compulsão alimentar, e isso está me fazendo muito mal, e não tenho com quem conversar. Não tem nenhum site não me faça sentir uma incompetente, afinal como eu ainda não entendi que a comida é minhas pior inimiga e tenho que ficar longe da geladeira?
É tão cruel que processos complexos de ansiedade, auto imagem, negação, autopunição que se repetem em infinitas pessoas sejam tratados com tanta falta de cuidado. Só quem ouviu repetidas vezes entredentes, no cantinho, de sussurro “fecha a boca”, “tem que se cuidar, hein” conhece a sensação de incompetência por não “saber se controlar”. Não quero sair do médico com mais uma receita de sibutramina e uma dieta dos pontos apesar dos exames em dia, nem quero tomar um ansiolítico suave, um antidepressivo leve que age super bem em casos de compulsão pra servir de apoio emocional.
Compulsão alimentar é um segredo, uma vergonha, um mistério. Uma doença para tantos remédios, pra tantas sessões de análise. Compulsão alimentar também é só uma das infinitas nóias do mundo moderno somatizada. E é uma das coisas que a mídia/ a ciência/ a cosmética/ a estética tratam com desprezo, à margem, além dos limites estabelecidos.
Penso que eu me amo quando me olho no espelho de biquíni, me acho horrível mas vou mesmo assim que é pra provar que posso. Quando me olho de biquíni e penso “caraca, gatinha!”. Quando me apaixono pela menina gorda porque era a mais linda da festa toda. Quando como sem culpa na frente de todo mundo, o quanto eu quero, do jeito que eu gosto. E acho que preciso me amar quando tenho compulsão alimentar, porque é tão horrível sentir tanta culpa e vergonha. Quando eu percebo que “não se nasce gorda, torna-se”, com o perdão do clichê, e não basta pesar meus 82kg para ser gorda. É um processo sobre se olhar no espelho, habitar a pele, visitar uns segredos embebidos em vergonha e culpa e olhar pra dentro.
Dito isso, vamos falar de compulsão alimentar, tá bem? Tá bem então.
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Essa linda das fotos é Amina Mucciolo, unicórnio que toca o Studio Mucci, estúdio de design e loja de moda. Após lutar vários anos contra a bulimia, Amina hoje é ativista body positive e tem mais de 95k seguidores no youtube e 128k no instagram! O canal dela não tem legendas em português, mas vale a pena conferir. 😉