O corpo gordo é um corpo negado


Morei numa montanha encantada, uma casinha de madeira e pedra, com animais fantásticos que a mata atlântica pode oferecer, de frente para a Lagoa e de frente para o Mar. Todos os dias, cada mínimo acontecimento era cheio de mágica e tudo, tudo mesmo, era uma metáfora para a vida real. Esse tempo trouxe intensas percepções corporais em meio a natureza, movimentos de consciência e retomada do meu corpo desconhecido por anos. Na longa caminhada para aprender a aceitar meu corpo e amá-lo, tantos conceitos desconstruídos, recriados, apropriação de palavras e ressignificados, ainda não tinha vivido esse prazer de retomá-lo, de saber como funciona e moldá-lo como eu gostaria de ser, transformar o corpo_embaraço em corpossível.

Descobri músculos trilha acima com mochila pesada, na cachutrilha deslizante durante meses de chuvaréu, alongamentos solares matinais, techno no fone de ouvido, caminhada de havaianas para pegar lenha no escuro, passos confiantes mesmo com medo de cobra. Descobri um corpo delicioso e flácido, musculoso e rígido, leve e resistente, que eu nunca tinha experimentado. Ao descobrir o prazer que habita minha pele, meus músculos, minha respiração, senti cada vez com mais força como meu corpo me foi negado a vida toda.

Além da vergonha de ser sapatão e gostar de “roupas de meninos”, não que alguém tenha me proibido de fazer alguma coisa por ser gorda, mas as risadas, as dicas de dieta, as piadas de gordo lentamente me faziam ter certeza do meu corpo estar errado. Apesar de ter aprendido, depois de velha!, a amar meus cabelos cheios, minhas sardas, meus dentes separados, minha boca grande, de amar ser eu mesma e me orgulhar disso, ainda não me sentia confortável tocando a minha pele, tinha vergonha das minhas coxas enormes e moles, o maior dos horrores à minha barriga pesada, dobrada sobre ela mesma. Tantas vezes desejei ter outra forma, outra silhueta, outra pele, outro cabelo. Quando emagrecesse, rasparia a cabeça, usaria roupa curta, dançaria.

Uma imagem que tenho muito vívida é o desejo de grudar minha cabeça, minha personalidade, meus sonhos num corpo novo, bonito; acreditava ser um conjunto de idéias expressas num rosto com voz e expressões aprisionado num corpo gordo, como castigo por minha gula e preguiça. Frases como “sai desse corpo que não te pertence!” proferidas como motivação nas academias que me inscrevi vida afora criavam ainda mais medonhas cenas, nas quais eu me via renascendo magra da minha pele gorda, abandonada como uma fantasia.

Na montanha, descobri uma existência prazerosa e autossuficiente, que não depende da aprovação e do desejo do outro, mas é a própria pele, os pelos, os músculos, os cheiros, ter a certeza que tudo que posso gozar será proporcionado por esse corpo. Isso gera um conforto primordial que permite pensamentos mais leves e fluidos. Me amar liberou um espaço enorme: só agora percebo quanta energia gastei querendo ser outra pessoa, não gostando de mim; canalizando ódio pelo meu corpo, aberta e sensível a todas as violências que me eram destinadas por ser uma mulher gorda.

Algo mudou profundamente quando entendi que não tenho um corpo, mas sou um corpo. Passei a perceber que o que sinto, como entendo o mundo e tudo que adoro ser são frutos das experiências vividas por esse corpo, exatamente esse e não outro, que emoções e órgãos, tecidos, fluidos estão interligados. Quando pude sentir a minha existência na barriga caída furadinha de celulite, nos caminhos das estrias, no rosto gordo e redondo, no suor que certamente virá se o dia é quente, nas coxas escuras de fricção, passei a escutar o que o corpo diz, me permitir sentir sem vergonha.

Sobretudo, não entendo mais o emagrecer como o devir sonhado. Penso que não é preciso emagrecer para cuidar do corpo gordo, basta cuidado, atenção e escutas  diários. Passei a acolher e aceitar os momentos de compulsão alimentar, e assim visitar o que dispara esses eventos, para deixar de repetir um comportamento que gera culpa e sofrimento. Olho meu corpo nu no espelho, dedico tempo a tocar o que me incomoda para não precisar me esconder, mas também para criar formas mais confortáveis e aconchegantes de existir, seja a postura, respiração, cultivar bons pensamentos sobre mim e sobre o mundo. Perceber em que momento perco meu rumo para a timeline e o Netflix, porque preciso ser arrancada da realidade, do que quero fugir.

Deixei a ilha, as águas, as metáforas da floresta, a casinha da montanha. Muda o ambiente e mudam os sentires. Volto a pensar sobre mim, sobre que felicidades tenho me negado viver. Quando as coisas viram caos, lembro de me amar desmedidamente: me toco, me massageio, me abraço. Cozinho os ingredientes que vão me fazer feliz e impulsionar para frente, como para me curar, não para me culpar, não para emagrecer. Me mimo, digo que sou linda, evito julgar com tanta dureza meus fracassos e incapacidades, e só assim sou capaz de criar. Criar me liberta. Quando me dei conta que meu corpo gordo é também meu objeto artístico, surgiu Engorda, minhas produções sobre ser gorda e visível. Finalmente é tempo de Engordar para fora, mostrar as dores e as delícias que perpassam meu corpo; o trajeto de perceber, redescobrir, encontrar a sempre nova eu, que já sabe como se amar, mas não tem conseguido sempre, virar arte e me espalhar em afetos virtuais..  

Como disse uma amiga querida num áudio, acho que acostumei a me ver escondida; e agora são tempos de se mostrar para o mundo, e quem sabe criar realidades mais suportáveis para tantas de nós, quem quer que seja nós. Quem sabe ser uma companhia, um afeto na solidão gorda, como tantas pessoas maravilhosas foram para mim.

Numa dessas conversas de pôr-do-sol, a hora mágica, uma amiga querida me disse que às vezes temos medo de ser feliz, e quando finalmente quando vivemos o que desejamos, bate um impulso de fugir da felicidade. Ela me disse para não ceder a esse desejo e me permitir ser feliz. De vez em quando preciso revisitar essas palavras, e revivo a luz e os aromas para me ajudar a não desistir.

Leio o Gorda e Sapatão há muitos anos, era um prazer navegar nas experiências de Jéssica, me sentir acolhida nas palavras de uma desconhecida, que sentia como uma igual, gorda e sapatão. Fui impelida pela força de uma desconhecida que expôs suas fragilidades e delicadezas para esse mundo cão que é a internet e me tocou. Me inspirou muita coragem para me permitir sentir e ser eu mesma. Estar aqui, deixar minhas sensações gravadas nos algoritmos binários da eternidade virtual, é como agradecer a Luarinha de antes que se permitiu, que se manteve forte, que não negou-se os próprios sentimentos. E um lembrete para continuar, não desistir dos desejos, envergar com o vento, mas não quebrar.


Sou Luara Erremays, devir_artista de São Paulo, começando hoje como colaboradora do Gorda e Sapatão. Os textos fazem parte do projeto Engorda, que reúne a minha produção de autorretratos, selfies, nudes e textos sobre gordofobia e body positive. Participei do documentário Madrepérola, de 2014, que propunha um olhar sensível sobre um universo compartilhado por mulheres gordas.

Não me lembro como era existir antes de possuir a linguagem, mas desde que sei juntar as letras, escrevo. Peço licença para estar aqui, e muito agradeço aos caminhos que me guiaram. Que o medo da felicidade não nos pare.