Milhares de hastes finas, que qualquer brisa verga mas que nenhuma espada cortará
Aconteceu ontem (18/11) em Brasília, a primeira Marcha das Mulheres Negras – Contra o racismo, a violência e pelo bem viver, que reuniu milhares de mulheres negras de diversos cantos do país! Logo pela manhã, o estádio Nilson Nelson e seu entorno estavam tomados por ônibus de onde desembarcavam mulheres do axé, quilombolas, do campo, das águas, das florestas, indígenas; lésbicas e bissexuais; de partidos políticos, de sindicatos, do 3º setor; autônomas de militância; lideranças políticas. Mulheres negras diversas: a marcha conseguiu reuni-las num ato que foi, de longe, o mais forte e significativo da minha vida.
As ruas do eixo monumental ficaram coloridas! E o Distrito Federal nunca viu tanta beleza reunida sob seu asfalto fumegante, nem tantos gritos de luta ecoando por suas construções retilíneas e perfeccionistas. No carro de som, o volume estridente que saia eram de músicas do axé, que enalteciam nossa beleza negra, nossa ancestralidade, o candomblé e os orixás. Muito batuque dançante porque a gente é dessas mesmo! Acredito que os racistas ficam grunhindo de raiva por ver um povo unido bradando suas exigências sem perder o toque do tambor, além de não tirar o sorriso da cara.
Sorriso foi o que não faltou nessa marcha! Cada uma com um sorriso mais lindo e cativante que a outra, que contagiava! Sabemos que não vai ser com uma manifestação grande que o racismo vai acabar, que nossa reparação plena de direitos será feita; mas é através da nossa presença na rua que vamos espalhar, cada vez mais, as denúncias das atrocidades que desde a colonização sofremos e que hoje, ainda permanece no âmago das estruturas políticas o colonialismo, a práxis de se relegar aos negros e negras um lugar subalterno. Ledo engano, meus caros. Pois enquanto os fascistas racistas se juntam pra fazer acampamentozinho na beira do Congresso Nacional, a gente vai tomando os espaços à força.
Enquanto fazíamos nosso trajeto, teve um momento onde os brancos desse acampamento fascista ~se sentiram ameaçados~, e a partir desse sentimento de ameaça que é uma multidão de mulheres neras, eles dispararam tiros pro alto, bombas de efeito moral, chutes e socos contra as mulheres, até que a polícia militar do DF resolveu aparecer pra piorar tudo (quando a polícia não piora uma situação que haja pretas/os envolvidos, néan?); e teve gás de pimenta na nossa cara, teve a tentativa de um cordão de isolamento (não entendi essa parte, eles estavam confusos), teve a suposta detenção do policial reformado que estava armado e que eu vi atirando pro alto.
Após esse momento de tensão, fomos voltando aos poucos pra nossa marcha… Já cansadas, pois o sol resolveu tomou espaço do mormaço e fez queimar nossa pele. Ainda tínhamos a volta pra fazer até o Nilson Nelson. E seguimos! Nunca paramos nem pretendemos. Mas preciso confessar que a caminhada foi árdua! Brasília não é tão receptiva pra longas caminhadas, apesar das ruas largas que só são boas mesmo pra andar motorizado.
Chegando no nosso ponto de encontro, um almoço delicioso nos aguardava, além de apresentações artísticas. Pude riscar da minha lista de ~coisas pra fazer antes de morrer: Assistir o Ilê Ayê! Foi muito especial pois eu estava ao lado de milhares de mulheres negras, dançando e cantando, sentindo todo poder emanado da batucada. Teve Tassia Reis de forma afrodestruidora! Luana Hansen, que ficou mal durante a marcha, mas tomou um fôlego e fez questão de cantar Negras em Marcha no palco porque; Donas da Rima (DF) se apresentaram e também Julia Nara, Lidia Dalet, Asé DUDU E Marisa Black mas que eu não pude apreciar porque tinha que ir embora, mas encantaram como de costume!
Nossos passos vem de longe, vem desde o continente africano, vem dos terreiros de candomblé. Nunca a população negra teve algum afago. Ao contrário disso, até hoje prevalece as marcas da escravidão, que nunca esqueceremos. A Marcha das Mulheres Negras proporcionou a integração de mulheres negras que antes não tiveram essa chance de se organizar com mais afinco politicamente, apesar de nunca terem ficado quietas diante das atrocidades cometidas contra sua vida e de quem as cerca.
Podemos problematizar toda uma questão política em torno do que foi essa marcha, podemos apontar o que foi estratégico ou o que não foi; podemos questionar a atuação das organizações políticas e sindicais, as lideranças, as tendencias políticas… Uma série de coisas podemos debater. O que eu acredito que não podemos fazer é menosprezar toda movimentação que a marcha causou. Eu conheço mulheres que foram pela primeira vez numa manifestação deste tamanho. Conheço quem tenha começado a se articular só por conta da marcha. Tenho notícias de coletivos surgindo a partir da oposição política perante a marcha. De um lado ou de outro, nosso saldo foi extremamente positivo. Sei que o sistema penal não mudou por causa de ontem; sei que as mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas do femicídio; sei que a juventude negra continua a padecer nas mãos do Estado. Mas eu sei que o poder reverberado em cada uma presente em corpo e alma naquela marcha, foi com certeza um alimento pra continuarmos nos articulando em cada fronte. Foi combustível pra que novas ações cresçam e velhas estratégias sejam reconfiguradas para serem aplicadas. Nossos passos vem de longe e permanecem em marcha, seja da forma que for
-institucional, autônoma, sindical, estética política, virtual- até que consigamos tudo aquilo que precisamos. Ano que vem as universidades vão ser novamente escuridas, com a juventude se apropriando e se engajando cada vez mais. Eu fico feliz e muito honrada de ter visto de perto e participado desse ato histórico. Desejo que a força preta estraçalhe mais grilhões, e outras manifestações de protagonismo das mulheres negras aconteçam ao decorrer do ano.
Nossa essência é RESISTÊNCIA!