Escrever é uma maneira de sangrar: Por que escrevo ou alguém ainda lê blogs?


Eu abri este post pela primeira vez em dezembro de 2016, na ocasião da palestra da intelectual Grada Kilomba em Salvador, Bahia. Depois, em junho de 2017, em março de 2018 e agora em maio de 2024. As marcações não me deixam mentir; está aqui escrito na configuração da página: seis revisões. Eu prometi voltar, só não disse quando. Desta vez, quatro anos se passaram desde a última vez que publiquei algo aqui no blog. A coragem para retomar a escrita veio sorrateira, em meio ao caos purulento de um fim de relacionamento. Eu sentia que ia explodir se não escrevesse.

Agora, com quase 33 anos, me rendi a uma página em branco do Word e coloquei em palavras minhas dores. Chorei a cada tecla pressionada, como se meu coração se espalhasse por entre as letras. Não era assim que eu gostaria de voltar à escrita. Durante um tempo, fiquei ensaiando a retomada do blog, pensando se começava o texto me desculpando e explicando minha ausência, ou se simplesmente abordava um assunto recorrente, ou até se começava por um outro mais polêmico. Alguém ainda lê blogs? Essa é uma pergunta que sempre surgia para me desestimular… Como se fosse uma ocupação, um trabalho, e eu dependesse das pessoas para existir, para ter valor. Mas nunca foi sobre isso. Eu quero escrever para me divertir, para exercitar minha mente, para compartilhar dúvidas e anseios. Quero despertar no outro algo latente que esteja em mim… Então, não seria nada mal se alguém ainda lesse blogs.

‘Mother Emanuel’ by Benjamin Hampson

Eu quero retomar de onde parei. Não por coincidência, este texto tem exatamente o compasso da continuidade de quem evita olhar para trás. Mas este texto tem, também, exatamente a responsabilidade contida na necessidade de olhar para trás para saber como continuar. Não evito minha própria contradição, porque nela está evidente todo movimento para que eu possa me refazer sempre que for preciso. Sem autoindulgência, porque não combina comigo, mas devo dizer que estar aqui e reler meus escritos me encheu os olhos d’água. A mão às vezes trava, a vista fica embaçada, ainda não sei definir: é saudade ou tristeza? Trauma ou medo? Insegurança ou depressão? Mas me perdoo por todas as vezes que parti.

Nesses anos sem produzir nenhuma notícia ou informação relevante para a comunidade negra, sapatona, gorda e feminista brasileira, compreendi que algo foi tomado de mim ao longo do caminho. Não tem tamanho exato, cor ou nome específico, mas sei que algo me foi tirado. Possivelmente, aquele ataque virtual em 2015/2016 tenha me levado mais do que eu imaginava, e anos depois ainda estou no processo de recuperar o que perdi. Não subestimem o poder das palavras, seja virtualmente ou pessoalmente: as palavras têm poder, tanto para o bem quanto para o mal, e se vierem em grupo… Aí, realmente, o estrago pode ser fatal. Quando comentei com uma amiga na época sobre o ocorrido, ela me fez enxergar que, apesar dos golpes, é preciso continuar. Reproduzo aqui, em tradução livre do inglês, suas palavras: se você, que me lê, também passou por alguma situação em que algo inominável foi tirado de você, saiba que:

Isso acontece com os melhores de nós. Um terapeuta que tive certa vez me lembrou de que lutar contra o sistema significa enfrentar os desafios que são as pessoas. As pessoas são o sistema, e é a consciência delas (e a nossa) que estamos tentando mudar. Portanto, as experiências em que enfrentamos,  pessoas que reproduzem o racismo internalizado são tanto uma vítima quanto um reprodutor das desigualdades que estamos desafiando.
Portanto, o desafio ao nosso trabalho, quando formos bem-sucedidos, não virá de um robô ou de um monstro que aterrissa na Terra e nos ataca com um exército. Serão outras pessoas, inclusive pessoas de nossas próprias comunidades. Portanto, quando isso acontecer, embora seja doloroso, lembre-se de que é um reflexo da importância de seu trabalho. (…) É bom tirar um tempo para se curar, mas não pare. – Como você sabe. É a única maneira de aprender a fazer o que você ama e desenvolver habilidades para lidar com as besteiras.”

Yes, I got it! Thanks Tanya!

 

Depois dessa nossa conversa, enfrentei o medo e cheguei a postar alguns textos. Tenho muito carinho por este blog, pois é um espaço que fui construindo através de processos coletivos e muito íntimos, resultando em textos que ganharam força sozinhos. Neste espaço, estão contidos anos de reflexão, pesquisa e nudez intelectual e física – como nas imagens tão polêmicas. É parte do que sou também, e é aqui que vou continuar me questionando, me contrariando, me reformulando, abrindo as páginas para outras escritoras contribuírem, para que o espaço continue fortalecido. É aqui onde pude desaguar, abandonar e retornar. Apesar de tantas ausências e transformações internas, sinto que aqui posso registrar minha passagem pelo mundo.

E

Por que eu escrevo?

 

Autoria desconhecida / Unknown author

Porque eu sobrevivi.

Aos 32 anos, sobrevivi: à pobreza, a ver minha mãe trabalhando com dor nas casas dos outros; ao racismo que relegou mãe e filha a uma solidão afetiva desde muito cedo, a uma família que cultiva o auto-ódio e ainda o propaga por gerações. Sobrevivi ao racismo institucional que ecoava todo dia na sala de aula, à perda de um irmão em decorrência do HIV/AIDS; ao abandono voluntário de um pai cujos telefonemas eram escondidos e as visitas contadas nos dedos de uma mão; sobrevivi à certeza da inadequação, à dificuldade em achar beleza em mim, à dificuldade em dizer “eu te amo” para minha mãe; sobrevivi ao preconceito e discriminação por ser gorda, à reprodução do racismo que alisava meu cabelo e queimava meu couro cabeludo, ao estupro no início da vida adulta; à cobrança de ser “alguém”, à falta de dinheiro para o básico, à peregrinação em procurar trabalho e não achar; à precarização e às horas de trabalho não remunerado depois; à invisibilidade por ser sapatão, às moedas contadas para minha mãe; sobrevivi aos sonhos não realizados e esquecidos, à cobrança cheia de racismo e lesbofobia por não “ser como todo mundo”, à não aceitação de todos os lados; sobrevivi às brigas por fazer escolhas que ninguém sequer imaginou possíveis, ao subemprego temperado com muitos salgados fritos e condimentos que o VR de 12 reais ao dia podia pagar; às dívidas e ao nome no SPC; sobrevivi à falta de perspectiva positiva e ao medo de ser uma estatística negativa; sobrevivi a um amor interrompido, à falta de oportunidade para crescer profissionalmente, vivendo de gambiarras; burlando o sistema e percebendo que não adiantou… Sobrevivi e estou sobrevivendo para conseguir apenas viver. A fé mora nos pequenos detalhes da tranquilidade de um fim de mês se encerrando sem perrengues: um quadro pintado diariamente com tinta à base de água, que insiste em borrar, aquarelar, transparecer, secar sem cor. Para ser pintado novamente.

Photo By Yolanda Y. Liou

Porque escrevo?

Para contar uma história interrompida.

Sou a 1ª geração da minha família que não vai repetir a história colonial completa: pude aprender a ler e escrever, pude viver e pensar sobre futuro, tive alguma oportunidade de escolha e, graças à minha mãe e outras mulheres que passaram pela minha vida, eu tive a chance de ter uma profissão.  Sou a personificação das tentativas de reaver o que nos foi tomado três gerações passadas e oferecer o NEGRO como ordem fundamental para as coisas funcionarem bem. Através das encruzilhadas eu rogo pelo dono – Laroyê! – peço licença e aproximo a fé com quem não é de asè, porque a tradução deve ser feita para que histórias interrompidas não recomecem da mesma forma, cumprindo os mesmos desserviços de antes. Além de interrompidas, as histórias devem ser contadas em primeira pessoa, sempre que possível. Eu quero ser uma ponte mas também quero ser a estrada.

Porque escrevo? Porque sim.

Porque busco minha compreensão mais íntima e visceral. Investigo minhas entranhas sentimentais e não gosto do que encontro (na maioria das vezes), mas é dessa forma que me compreendo humana, com qualidades e defeitos, anseios e sonhos, pois não sou apenas uma. Sou complexa e inversamente proporcional ao que o colonialismo quer impor a mim. Sou vasta, como o mar a perder de vista, e ainda ouso me dar licença poética sem pedir permissão aos cânones da literatura. Não pedirei licença para ser quem sou.

“Escrever é uma maneira de sangrar. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida.
Conceição Evaristo

Escrevo para fazer meus caminhos, levantar a poeira e deixar um rastro. Escrevo para que outras como eu possam saber que resistimos numa coletividade ancestral e contemporânea e que é um dever retornar para casa com algo nas mãos. É um dever político não esquecer de onde viemos e de como conseguimos traçar aquele caminho, para então, voltar.
Escrevo para não me esquecer. Tenho medo das seduções coloniais me transformarem em alguém que não sou. E devo dizer que, por vezes, não me reconheci. Agi no automático, me dopei de remédios e me droguei: dos entorpecentes aos apps, fingi que não era comigo e que não me atingia todo o ódio anti-negro do mundo. Reconhecer essas e outras merdas no cotidiano me faz retomar de onde parei.

Autoria desconhecida / Unknown author

Escrevo para jogar na minha própria cara as contradições que habitam em mim. Escrevo para tentar me livrar delas e ser alguém mais coerente na vida, ser feliz com minha versão de pessoa. Não no sentido cristão de redenção ou algo do tipo, mas no sentido de não esquecer o porquê de tudo isso no mundo.

Escrevo para denunciar as violências e violações que vivenciamos enquanto LBTs negras e não-binárias, para formar uma frente argumentativa e vívida, para que não tenham dúvidas (e mesmo assim duvidarão) de que seguimos firmes apesar de tudo.

Escrevo como forma de sobrevivência, registrando minha passagem coletiva neste mundo. Não quero ser definida pelos marcadores sociais, quero fazer minhas definições e deixar outras tantas coisas sem definição alguma. Quero falar e ser ouvida, quero ouvir o que outras tem a dizer. Não deixarei que outrem fale por mim. Também não falarei por ninguém, só consigo representar a mim mesma. No máximo, consigo ser uma presença pedagógica nos espaços, visibilizando nossas dores&sabores coletivas.

House of Tara By Megan Winstone For 10 Magazine March 2021

Porque escrevo?
Porque sim.

Sou uma sapatão pensante, mas já duvidei disso várias vezes. Senti-me burra e incapaz de reflexões complexas, de acompanhar a política local, de opinar publicamente. Deixei-me intimidar pelo conservadorismo patriarcal caçador de coragens. Sou uma inquieta sagitariana, não me contento com pouco movimento, som baixo ou superficialidade nas pessoas. Descobri que sou intensa e essa tem sido uma das melhores experiências nos últimos anos.

Um dia escrevi que era filha de Oxóssi, mas logo recuei na minha pequenez e reconheci que tenho fé nos orixás, nkissis e voduns, mas que se auto-nomear qualquer coisa não faz parte dessa cosmovisão: é preciso ser convidada e escolhida para que uma comunidade possa cuidar de você e te reconhecer como tal, é preciso primeiro o desejo do parto para depois do rito, dizer teu nome.

Reivindico minha humanidade e cidadania por outra ótica, rejeito a “normalidade” através da imponência natural do meu corpo, lança de ponta: afiado corpanzil na disputa territorial pela existência em pleno bem viver. Não só o meu, mas de todas as pessoas que comungam de experiências similares. Escrevo porque sou fruto de muita luta, sangue e suor derramados nos campos de plantações e quartinhos de empregada.

Porque escrevo?
Porque sim.

Porque só eu posso dizer quem eu sou. Quando escrevo, me desloco da margem e me estabeleço no centro, me enfio, me engalfinho, me espreito e estouro os limites da borda que não me cabem! Me estabeleço no centro, no protagonismo da minha própria voz. Estava com saudades disso. Escrevo para romper paradigmas e imaginários racistas de uma única história; escrevo para desestabilizar a colonização moderna que quase me fez acreditar que eu não podia ousar ser quem eu sou. Não deu certo, por isso também escrevo para registrar o fracasso desse legado escravocrata em nos impedir de ser e estar no mundo. Somos sobreviventes, resilientes, humanamente capazes de não só resistir, mas também de nos definir a partir de uma coletividade sagrada.

Escrevo porque o passado colonial interpela e altera as chances do meu presente e do meu futuro, e eu vou transformar meu caminho em ponte, usando as ruínas que deixaram. Novas perspectivas, novos horizontes. Compreendo quem sou com a tranquilidade de saber que não há uma resposta pronta, certa ou errada, mas que sou dissertativa e não “alternativa”. Não sou “A Outra”, nem a exótica, muito menos a “diferente”: Diferente de quem? Por quê? Diferente do que estipularam como referencial, é claro… bem claro, os olhos, a pele alva, o corpo branco. O homem. É a partir dele que me diferenciam. O homem branco é o espelho e eu sou a distorção. Dizem.

South Carolina artist Ansley Adams

Porque escrevo? Porque sim.

Não quero inverter o jogo e passar um pano por cima. Quero que o jogo acabe, porque só tem um lado com vantagem e não é o lado das pretas e pretos. Não quero só um referencial validado pela sociedade, quero diferentes referências, múltiplas possibilidades de existência – sem violência ou violação de direitos! Quero que com isso as hierarquias se explodam, virem pó! Quero continuar a escrever minha história, não somente para um “público”, mas para mim. Quero relembrar meus fatos com a nitidez que um registro escrito me propicia. Quero a oralidade virtual em face dos desafios de se aquilombar fisicamente. Quero continuar me alegrando ao saber que meus escritos fortalecem coletivamente alguém, e ficar satisfeita e orgulhosa, e jamais pensar em desistir de escrever. Mas não quero me cobrar em exagero desumano. Não me valho de nada se estou desgastada e frustrada.

Porque escrevo?
Porque existo
E insisto em buscar
Alegria, afeto e luta
Dentro e fora de mim.

Inspirado em Grada Kilomba, “While I write”