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“as pessoas sentem que têm o legítimo direito de policiar o corpo alheio, exprimindo qualquer tipo de opinião não desejada e ditando, como donas da verdade, o que elas acham que é melhor para você.”
Por Amanda Tintori
Eu sempre fui uma pessoa magra. Não magra de “não ter barriga”, pelo contrário, quase sempre tive uma pancinha – mesmo antes dos hábitos cervejólatras. Eu sou daquelas pessoas com pernas finas, joelhos ossudos, mãos esqueléticas, só pele e osso no pulso… Ah, o pulso. Não quero desviar a linha do pensamento, mas preciso fazer essa observação. Tenho lembranças de desde sempre de pessoas, às vezes que eu mal conhecia, pegando, sem pedir licença/permissão, no meu braço, para falar coisas como “NOSSA! Que pulso mais FINO!” – isso quando eram pessoas “educadas”. Tenho muitas lembranças de pessoas que não tinham pudor algum em, de repente, apertar meu pulso, olhar pra minha cara e falar “CREDO! Você não come não?” e, se duvidar, ainda ficavam balançando meu braço no ar pra mostrar pros outros – “Olha isso! Que seca!” Parece um relato bobo, mas acredito que o fato de eu ter TANTAS lembranças de situações desse tipo é relevante. Não que isso tenha me traumatizado ou coisa assim, afinal, isso é uma consequência relativamente inofensiva de algo que passei a observar cada vez mais, que é: as pessoas sentem que têm o legítimo direito de policiar o corpo alheio, exprimindo qualquer tipo de opinião não desejada e ditando, como donas da verdade, o que elas acham que é melhor para você. E o pior é que tudo isso, muitas vezes, passa disfarçado de “preocupação”.
Mas é engraçado que a única parte da minha magreza que era ridicularizada dessa forma era aquilo que escapava ao padrão de magreza “sexy”. Meu pulso finíssimo incomodava, mas meus ossos da bacia salientes eram elogiados. Como eu disse, meu corpo sempre foi um corpo magro. Mesmo quando as coxas e o quadril engordavam, mesmo com a barriga fazendo dobrinhas, o pulso continuava fininho, os ossos do ombro continuavam evidentes. Eu passei muitos anos da minha vida sem me importar com a aparência do meu corpo, muitos mesmo. Posso não saber o momento exato, mas não tenho dúvidas que isso começou a mudar à medida que as pessoas ao meu redor na minha adolescência começaram a demonstrar interesse pelo meu corpo. Um interesse que eu não compreendia, sabia que não gostava, mas que convenci a mim mesma que era “cuidado”, “preocupação”. Poucos anos atrás, teve alguns períodos em que eu fiquei MUITO magra. Eu não fazia dieta alguma, eu estava com a saúde péssima mesmo. E meu corpo sentiu as consequências. Eu sabia que eu não estava saudável, estava com a imunidade baixa, cabelos caindo, unhas quebrando e descascando. Eu não estava feliz com a minha aparência por que era a aparência de um corpo que não estava bem. Mas, sem dúvidas, eu recebia muitos elogios. Lembro de algumas vezes tentar rebater, com algo como “Olha, obrigada, mas eu tô com uma alimentação ruim, sabe? não é legal…”, mas parecia não importar. Eu estava MAIS MAGRA! Deveria estar comemorando!
E, como não poderia ser diferente, quando eu fui voltando a ficar saudável, a comer melhor, a me sentir mais forte, eu engordei. As calças ficaram mais apertadas, a barriga voltou a ter umas dobrinhas, minhas unhas ficaram mais fortes e grossas, meu cabelo menos quebradiço e
minha imunidade muito melhor, então não tinha como eu não estar feliz com a mudança.
Mas era extremamente desanimador ouvir pessoas que “se preocupavam” comigo comentando, com aquele tom de pena na voz, “Poxa, você engordou um pouquinho, né?” ou então, o mais absurdo, “Você tá comendo bem?!” Eu realmente fiquei encucada com isso. De fato, quando eu emagreci muito em pouco tempo, ninguém achou estranho, ninguém quis saber o que eu estava ou não estava comendo. Eu estava magra e isso bastava! E não é como se as pessoas não soubessem do meu estado de saúde; eu, literalmente, ficava resfriada ou gripada todo mês, e todo mundo próximo de mim sabia das dificuldades financeiras e a falta de tempo para me cuidar e como isso dificultava ter uma dieta saudável. Mas minha magreza doentia só recebia elogios. Mesmo de quem sabia que eu estava me alimentando muito mal. Foi a partir daí que comecei a pensar que ninguém que vinha dar pitaco na minha aparência estava verdadeiramente preocupado comigo, com meu bem-estar, com minha saúde. Comecei a ficar cada vez mais com um pé atrás toda vez que alguém vinha dar uma opinião sobre a minha aparência. Outro exemplo: sempre ouvi muito que eu não deveria colocar piercings ou alargadores ou fazer isso ou aquilo com meu cabelo por que eu não conseguiria um
emprego, não seria levada a sério, coisas do tipo. É claro que, sim, existe certo preconceito com modificações corporais, mas as que eu tenho nunca me impediram de conseguir qualquer emprego que eu quis. E, cada vez que eu fui contratada depois ter feito a entrevista com todos meus piercings na cara, percebia mais e mais que aqueles “avisos preocupados” não eram preocupação coisa nenhuma. Era policiamento.
No fundo, ninguém queria saber se eu estava comendo bem ou não, se eu seria contratada ou não. O que queriam era controlar minha aparência, que eu me encaixasse no padrão que os outros desejavam, policiar qualquer alteração no meu corpo que fugisse à norma esperada. Quem se preocupava com a minha saúde, vinha conversar sobre a minha saúde, sobre minha alimentação, mas não sobre minhas mais novas dobrinhas na barriga. Quem se preocupava com minha situação financeira/profissional, vinha conversar sobre trabalho, não sobre a quantidade de brincos que eu uso no corpo. E continua sendo assim. Hoje eu tento ter em mente a diferença entre quem se preocupa comigo de verdade e quem só quer policiar, regular, controlar o que eu faço ou deixo de fazer com meu corpo e com a minha vida. E reconheço que, se eu, uma mulher magra, passei por esse tanto de situações constrangedoras e invasivas, uma mulher gorda provavelmente passou e passa por outras muito piores. Faço questão de ressaltar o privilégio que minha aparência sempre proporcionou, apesar de tudo. Afinal, os braços finos e quadris ossudos compõem o padrão de beleza-magreza da nossa sociedade, né? Só não pode ser magra demais… Mas eu aprendi algo com tudo isso e acredito que a mensagem que eu gostaria de passar é válida para todas nós:
Desconfie MUITO de qualquer pessoa que tente policiar seu corpo. Quem tem intenções realmente boas não vai tentar fazer você se sentir mal consigo mesma.
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