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Não estou imune à gordofobia, esse fantasma me persegue. É uma luta constante, mas ao pensar na minha vida e aonde eu cheguei, percebo que tive conquistas, que as coisas melhoraram sim para mim. E continuarei lutando. Sempre.
Por: Cláudia Naomi Abe
Minha história não é diferente de muita gente, mas fico feliz em saber que alguém quer saber minha história.
Tem muito mais coisa envolvida, é claro, afinal é uma vida. Vou tentar relatar as principais coisas.
Lembro-me de quando meu pai faleceu e eu tinha quase 13 anos. Foi um choque, a pessoa com quem eu mais tinha afeição dentro da minha família simplesmente foi embora.
Toda minha família por parte de pai tem tendências genéticas a alguns problemas metabólicos, hoje conhecido como síndrome metabólica. O início da puberdade somado ao choque emocional da morte provavelmente catalisou os meus problemas de saúde a aparecerem.
Eu não tinha amigos na escola (a CDF da sala, a japonesinha, a menina que veio de outra escola, a filha da professora, bem, ninguém me queria por perto). Me segurei no único prazer que restava, a comida. Além disso eu trabalhei (sim, uma menina de 13 anos) no restaurante de um parente, comida chinesa, é obviamente comia lá. Deliciosa, mas não exatamente equilibrada.
Lembro de rapidamente a balança ter subido, muitas das minhas lembranças estão ligadas ao número que aquela balança indicava, e lembro bem que naquela época eu engordei 10 kg em apenas um mês. E assim a síndrome metabólica deu as caras, eu tinha muitos sintomas. Um dos sintomas chama-se acanthosis nigricans, escurecimento e manchas na pele, principalmente na virilha, axila e pescoço.
Imaginem só, a menina de repente ganhou dezenas de kilos e surgiram manchas escuras no pescoço, virilha, axilas. Virei a gorda e porca.
Sofri vários tipos de bullying, fui xingada de porca por causa das manchas, perguntavam se eu não tomava banho. E não foi só na escola, em casa eu escutei as mesmas coisas.
Gorda e toda cheia de manchas escuras, eu comecei a tentar esfregar as manchas a todo custo, passava um tempão no chuveiro passando a bucha para ver se mudava, cheguei a passar uma daquelas lixas de pé nas coxas internas (ali também tinha) e só parei pq eu vi sangue.
Passei a usar o cabelo comprido e sempre cobrindo as manchas do pescoço, passei a não usar regatas pois apareceria as manchas da axila ou então a não levantar os braços de jeito nenhum.
Cheguei a ir em um cardiologista especialista em obesidade, e olha que engraçado, o médico só atendia para obesidade se fosse pago no particular, pelos planos de saúde não atendia para obesidade. Em um endocrinologista que fui, ele passou vários exames de sangue para fazer e me receitou anfetaminas para tomar. Eu comecei a me sentir mal tomando as anfetaminas então eu parei, como orienta a bula da maior parte dos remédios, se sentir-se mal, suspender o uso e comunicar o médico certo?
Duas coisas engraçadas, os resultados dos meus exames eram diferentes do que ele estava esperando, então disse que os exames estavam errados e eu deveria fazer em outro lugar, e ele brigou comigo por ter parado de tomar a anfetamina, eu perdi 3 kg no período de 1 mês e ele acho que eu perdi pouco e disse para continuar tomando.
Fiquei assustada quando li sobre mulheres que tinham a vida destruída por vício em anfetaminas, decidi que não tomaria mais, mesmo que isso significasse ser gorda mesmo.
Feia, indesejada, gorda, porca, era como eu me sentia. E sentia que era tudo culpa minha, eu que não me cuidava, eu que era assim. Eu que estava com preguiça.
Todo mundo parecia ser especialista em como emagrecer. “É só fechar a boca”, “é só tomar vergonha na cara”, “é só fazer exercício”, é só virar de ponta cabeça na lua cheia apoiando um abacaxi na ponto do dedo do pé enquanto dança gangnam style”.
Todos te olham de cima a baixo, algumas vezes os comentários são bem descarados, algumas vezes são sutis.
Decidi que eu não iria emagrecer só porque os outros achavam que eu deveria, não iria fazer nenhuma dieta maluca pensando em como eu iria ficar bonita. Decidi que se alguém quisesse namorar comigo, deveria gostar de mim gorda mesmo.
Parece simples, mas não é. Passava longe de espelhos, e chorava escondido pensando em quanto eu me odiava, cheguei a tentar suicídio de tão mal que eu já fiquei (por esse e outros motivos também). Mas a decisão foi o começo do meu processo de superação.
Tive um namorado que chegou a me dizer que quando transava comigo ele imaginava meu corpo diferente. É, doeu muito.
Anos e anos se passam.
Muita coisa aconteceu, passei por muita gordofobia, poderia escrever um livro só com isso, com todas as merdas que já escutei e que já passei.
Cerca de 4 anos atrás, meu irmão sofreu um ataque cardíaco (ele tinha 33 anos), e na UTI, enquanto se recuperava, me disse para eu tomar cuidado comigo.
Isso me assustou bastante, então decidi procurar ajuda médica para várias coisas (obesidade era uma delas? incrivelmente não). Nessa ida a vários especialistas que descobri o quanto os médicos que consultei quando era adolescente foram babacas. Descobri sobre a síndrome metabólica, vi os meus exames e compreendi. Finalmente encontrei uma médica que estava me ajudando a ser saudável. Quando relatei a ela minha experiência com aquele médico da anfetamina, ela ficou chocada. Especialmente porque eu já exibia os sintomas na época. Percebi que aquele babaca queria que eu viciasse e ficasse indo lá para pagar a consulta para pegar receita. Sorte a minha que escapei.
Foi mais um passo para mim. Descobrir mais sobre meu corpo e ter ajuda genuína para cuidar da minha saúde.
Um dia fiz um curso de libras e me apaixonei, descobri que os surdos preferem ser chamados assim, e o jeito “politicamente correto” de chamar os desagradava, deficientes auditivos, pois não se consideram deficientes, se consideram pessoas completas. Empoderaram a palavra surdo como identidade e até mesmo como cultura. Me intrigou. Uma palavra tão usada como ofensa ser uma identidade. E o que isso tem a ver com minha história? Já vou explicar.
Há não muito tempo, eu tive um bebê (hoje tem 1 ano e 5 meses). E uma coisa interessante aconteceu.
Desde que nasceu, meu bebê era gordinho, e mamava bastante então ficava cada vez mais gordo.
O pai dele ficou chamando-o de gordo desde que nasceu. No começo me senti bastante incomodada, pois na minha cabeça chamar de gordo era ofensa. Lembrei então dos surdos. Ser chamado de gordo nada mais era do que uma descrição de como o bebê era. Gordo.
Com o tempo passei também a chama-lo assim.
A palavra gordo foi se transformando para mim. Se tornou a forma carinhosa de chamar meu filho. Passei a encher a boca para dizer “Gordo!”, com muito amor no coração, muito carinho.
Percebi que isso tinha acontecido quando chamei meu companheiro (pai do bebê) de gordo ao invés de dizer o costumeiro “eu te amo”. Dei risada de mim mesma, uma palavra tão temida de ser escutada por mim, de repente se tornou algo tão bonito, uma forma de demonstração de carinho.
Basicamente esta é minha história, acabei escrevendo demais, desculpe por isso.
Queria também relatar que li algo que me tocou profundamente. Disse que evitar falar a palavra Gorda, é apagar uma identidade. Ser gorda é uma identidade, não uma vergonha.
Sou gorda. Hoje eu consigo dizer.
Não estou imune à gordofobia, esse fantasma me persegue. É uma luta constante, mas ao pensar na minha vida e aonde eu cheguei, percebo que tive conquistas, que as coisas melhoraram sim para mim. E continuarei lutando. Sempre.