Onde estão as preta e sapatão?


Queridas pretas lésbicas,

Por onde vocês andam? Parece que desde que assumi minha identidade preta&lésbica, vocês sumiram. Eu não entendi isso… Me assumo, reivindico e vocês desaparecem? Como assim? Me sinto abandonada. Sem acalento, sem afago. Porque isso agora?

Por onde vocês andam, pretas? Não as vejo nas ruas, nas lojas, nos cinemas… Muito menos nas escolas, nas universidades, nas empresas de comunicação social. Não… acho que já teve uma vez  que as vi… Foi de uma forma muito ruim, zombeteira com a gente. Era retratado um estereotipo bem pesado, sabe? Carregado de duplos sentidos misóginos e racistas, lesbofóbico por regra… Eu não aguentei nos ver diante daquela telinha. Do mais, pra falar a verdade, não lembro se cheguei a ve-las em algum filme na tela grande. Não…. pode ser que eu lembre e faça um update neste post, mas por enquanto não lembro.

Pretas de Safo, por onde vocês andam? No trabalho eu não encontro com vocês, aqui vocês não existem. No metrô, eu encontro bastante até, é verdade… Nos identificamos por olhares certeiros mas logo um vagão passa e eu nunca mais as vejo. O que é isso? Não gosto assim… Onde eu as encontroOnde é o pico de vocês?

Quero conhece-las. Quero conversar, almoçar e beber com vocês, sempre que pudermos. Mas eu já procurei e não obtive resultados.
Eu sei que vocês existem, resistem e persistem, mas… Onde?!  É muito pungente a necessidade de estar entre vocês, queridas pretas. Pois só assim vou me sentir parte daquele grupo ao qual eu realmente pertenço sem nenhuma pressão exercendo sobre mim. Eu pertenço a este grupo social pois me identifico e reivindico este espaço para promoção de uma emancipação negralésbica! Entendem?

É mágico o encontro daquelas que por muito tempo estiveram separadas… E eu não quero me manter longe.

Será que eu é que frequento espaços errados? Espaço “de branco”?  Algumas minas não-negras não entendem essa minha inquietude de encontra-las… Pra elas, é “tudo sapatão mesmo, não faz diferença”. Mas FAZ SIM!
Faz diferença estar rodeada de pretas e lésbicas, que compartilham comigo, o racismo e a lesbofobia. Faz diferença sim! A forma como as pessoas olham para um grupo de sapas brancas na rua, é diferente do olhar que disparam contra um grupo de sapas pretas na rua.

Não amiga branca, não é segregar. Tão pouco é isola-las de meu convívio ou promover esse tipo de coisa. Essa minha vontade é motivada pelos anos de exclusão existencial ao qual eu estive afundada, obrigatoriamente. E agora, que consegui me livrar de muitas coisas, nada mais justo que queira conviver com aquelas que detém especificidades em comuns comigo. Não acha?

Vou continuar deixando registros de que prezo muito pela união preta&sapatão nos espaços públicos. Vou continuar gritando pra todo mundo ouvir (e ler) que estar cercada por amigas pretas e lésbicas FAZ SIM TODA DIFERENÇA na vida de uma… preta&lésbica!
Pra quem nunca teve um referencial de mulher preta e lésbica pra se identificar e não sentir-se avulsa no mundo, clamar por vocês faz todo o sentido na minha vida.

 

 

 

Women with Colourful Rug,1920 by Max Pechstein

Women with Colourful Rug,1920 by Max Pechstein

Preciso confessar que esse texto estava nos rascunhos há uns 4 meses já. Eu escrevi num dia em que me sentia triste e muito sozinha. Lembro que chorei e parei na metade da escrita. Me achei muito ridícula por escrever isso… Achei que a culpa era minha por não ser “tão legal assim” e, consequentemente, esse era o real motivo pelo qual eu não tinha amigas preta&sapatão. Eu que não era boa o suficiente para conquista-las…
Desse tempo pra cá, eu percebi que havia caido em mais uma armadilha mesquinha do patriarcado&CIA, que me fez impedir de escrever para as minhas semelhantes.

A dificuldade em encontra-las é porque há toda uma trama perversa que permeia nossas vidas que não nos permitem exibir quem somos. O racismo faz com que nossa identidade preta seja massacrada e, exalta-la aos quatro cantos é digno de vergonha. “Vai ter orgulho de ser preta, menina??? Isso é coisa ruim!” disse uma pessoa que eu prefiro guardar o nome.
E como se não bastasse, nos identificar enquanto lésbicas ou bissexuais, também não é um mar de rosas porque vem estilhaços pontíagudos de preconceito por todos os lados: desde à família até às amizades. No trabalho: Shiiiiiw! Você tem que pagar de heterossexual, fingir que sente atranção pelos caras… Pra se manter no emprego. São poucos os lugares que não te quebram por causa da sua orientação sexual, sabiam? Pois é.  Sair às ruas em plena segurança de nossa negritude e lesbiandade é um furo na barreira racista-patriarcal. E nós conseguimos!
A medida que sabemos da existência uma da outra, acabamos por gerar um efeito benéfico que vai atingir várias minas… Essa é a tal da visibilidade que eu busco. Bom, pelo menos uma boa parte dela.

Maria Rita, Nênis, Luana, Mara, Regiane, Dani, Paloma, Katiara,Drica, Fernanda… Foram algumas das preta&sapatão que eu tive a oportunidade de conhecer, trocar ideia, militar junto, beber e dar risada…. Mas se eu for analisar, elas são minorias. No entanto, as prezo como se fosse minha jóia mais preciosa e rica: o que de fato é.

 

Zanele Muholi: Between Friends, 2010. Photo by: Zanele Muholi. Courtesy of Michael Stevenson Gallery.

Zanele Muholi: Between Friends, 2010. Photo by: Zanele Muholi. Courtesy of Michael Stevenson Gallery.

 

 

EU ESTOU AQUI!
preta&sapatão,
sou mais uma
dando a cara
à tapa.
Se você aí, que é preta e lésbica, e me leu agora: manda um oi! Me diz sobre a sua existência.

Um beijo!

38 Comments

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  1. 5
    Crisantemus

    Oi!
    Sou japa e sapatão. Os “problemas” nunca terminam!
    Recentemente escrevi um post perguntando “onde estão as lésbicas cultas do país?” porque esse perfil também está sumido! rs
    beijos

  2. 6
    Jéssica Ipólito

    Olá!

    Bom, eu não acho [que esse perfil está sumido].
    Acredito que esse título só cabe a você, por conta de experiências pessoais e tal, mas “lésbicas cultas” recai em muitos recortes. Acho muito nocivo esse seu texto porque ele não explana nada além da sua experiência e olha, daria uma ótima análise se você saísse do campo individual e se aventurasse no campo coletivo social, ponderando visões de raça e classe aí. Muitas das suas perguntas achariam respostas, ou pelo menos, um princípio de.

    Até mais!
    Beijos

  3. 8
    Maysa

    Muito bom seu texto!
    Ele resume meus questionamentos durante a adolescência, onde andava com grupos de sapatões brancas/ padrões e muita das vezes machistas (…)

    Preta e Sapatão
    PRESENTE! \o/

  4. 9
    SUZANA

    Eu realmente acho que o preconceito não está somente para a lésbica negra,mas também para a lésbica gorda,lésbica deficiente,entre outras diferenças.Infelizmente o mundo gls também discrimina.Ser lésbica,gay,bi não nos isentam de também olhar torto o diferente,de não querer envolvimento…Sinto o preconceito velado e descarado por uma diferença que tenho,e acredite,vindo de lésbicas.Logo o público que sai às ruas reivindicando igualdade e respeito.É no mínimo contraditório,mas é a realidade.

  5. 14
    Aline Matos da Rocha

    Sou preta e lésbica, e amei a reflexão cheia de inquietudes que caminham conosco cotidianamente. Quem somos? Onde estamos?

  6. 15
    Priscila

    Morando num país onde a grande maioria é Branca me sinto de alguma maneira dividida entre os muitos brancos e os poucos negros, já que pra muitos deles eu nao sou nem branca nem negra, sou mestica. E ser mestica nao me faz branca e de alguma forma tambem nao me faz negra. Não aqui. Ou talvez eu só ache isso porque os poucos negros que vejo na rua sao em via de regra homens negros e eu nao faco muita questao de puxar papo com homens.
    Ano passado fiz parte de um Seminario em Berlin para Mulheres nao-brancas.
    Eu acho que a muito tempo nao tinha a oportunidade de ostentar um sorriso tao grande de felicidade por me sentir em casa, mesmo nao tendo a oportunidade de conversar com 1/5 das mulheres que estavam lá.
    Mas o que mais me faz falta nao é de ver pessoas negras, mas de ter amizades com mulheres que além de negras também sao nao-heterosexuais.
    Me deixa triste saber que essa dificuldade tambem rola no brasil.
    Bem, eu ESTOU AQUI, de longe, MAS EU ESTOU AQUI.

    PRETA E SAPA!

    Obrigada pelo texto!

  7. 23
    Priscilla Assunção

    Cá estamos nós! Achei muito válido o questionamento, e também não encontro resposta..mas, qualquer coisa é só chamar 😉

  8. 33
    Aline

    Eu estou aqui TB, sou lésbicas preta e gorda. Já sofri muito por isso e depois que conheci mulheres como eu e vc minha vida mudou muito. Representatividade importa sim e muito, queria eu ter aprendido a me amar e me aceitar como sou a mais tempo, queria eu ter meninas como eu com quem eu pudesse contar, chorar conversar quando as pessoas me machucavam por ser como sou, hoje com 30 anos me amo, me aceito, tenho meus conflitos ainda, mas sei que não estou só e isso me ajuda muito.

  9. 35
    Taís Rocha

    Após estar quase me convencendo que estava sozinha, achei você. Muito obrigada, tô me sentindo sendo lida por dentro <3

  10. 37
    Jess Serafim

    Aiiiin Jéssica….caramba! Sempre me dilacerando com as tuas palavras….
    eu sempre passeio por aqui…timidamente…leio, releio…mas hoje eu senti vontade de comentar.
    Ontem eu senti mais uma vez as faces do preterimento, da solidão, da excludência das manas negras… e a dor foi maior, por sentir isso dentro de um grupo les/bi, onde eu ‘devia’ me sentir representada e acolhida.
    Ao comentar e questionar o porque de não haver fotos de minas negras (no meio das xerox brancas e magras) na pág…não fui respondida, não fui acolhida…nem apoiada e pra piorar… fui excluída sem nenhum tipo de aviso… aquilo doeu. Excluída de um grupo com 88 mil seguidoras pq resolvi não me calar( antes de eu mesma me retirar). Soube e li dps prints feitos por outras manas que tbm sentiam essa lacuna: as adms disseram que só postam fotos bonitas, não interessa a cor, apenas fotos bonitas… gorda não entra, preta mt menos!

    E eu..que vinha nesses últimos tempos ‘passando batida’, sem agressões, sem problemas… vi mais uma vez a face desse racismo gordofóbico, esse ataque massivo e silencioso às minas negras e gordas … nesse instante lembrei de você… das ofensas, das denuncias nas fotos do insta, dos ataques no face…e chorei longamente. Que sensação cruel, que nó eu tinha na garganta (que aliás não saiu… e retorna agora enquanto escrevo).
    Fiquei com um sensação dolorida mas ao mesmo tempo de fortalecimento… mais essa marca, mais esse sinal de alerta. Mas cá estou, triste pela situação e ao mesmo tempo feliz de não ter me calado e de não mais participar de tal grupo. E acima de tudo: PRETA, GORDA e SAPATÃO nesse rolê!

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