Sobre um sonho da semana passada


Raramente lembro dos meus sonhos, raramente mesmo. Nunca lembro de anota-los, como minha psicologa sugeriu. Não adianta dormir com um caderninho do lado da cama… Eu ignoro e sigo em frente. Não lembro do sonho e nem de escreve-lo. Pois é.

Mas teve um sonho que foi com você, sabe… Esse raro que eu lembrei. Lembrei porque foi tão bonito que fiquei digerindo ele uns bons dias depois. Era o tipo de digestão que me fazia bem e daí eu me senti um ruminante com 4 estômagos (gente, sério, eles tem 4 compartimentos estomacais, não tô loca, ok), fazendo todo o processo de digestão em cada um deles. E cada vez que eu me lembrava, outras partes iam surgindo e completavam meu sonho. 
 
Não existe bem um começo definido, porque é um sonho… sonhos certinhos não fazem minha vibe. No entanto, existia eu e você. Andávamos pela rua ou a rua andava por nós… não tenho certeza. Mas o negócio é que estávamos lá, numa rua qualquer, num período do dia qualquer, sei lá… Não lembro de horas, aí é pedir demais para minha pobre memória… 
 
 
 
 
 
Não, infelizmente eu não lembro do que você vestia nessa ocasião. Mas eu lembro do seu cabelo solto bagunçando conforme o vento soprava nossa cara. E lembro também de te ver sorrir várias vezes, e também não faço ideia do nosso papo… Devia ser mais um dos tantos que a gente sempre tem e que são sempre divertidos. Sempre que estamos juntas, a gente sorri. Dá risada. Gargalhadas. Sempre tem um momento que a gente fica rindo por mais de 10 minutos, você conhece isso… 
 
Mas voltando ao sonho: pra variar, seu sorriso era lindo, não tinha como ser diferente da vida real, apesar de ser sonho.  Sentamos num canto, havia uma bebida (acho que cerveja?) que matávamos nossa sede… Conversa vai, conversa vem… Te expliquei certas coisas que me incomodavam. Te contei outras tantas que guardava pra mim há tempos. Pedi sua compreensão pois se tratava de um assunto delicado para mim. 
“A sua amizade é muito importante para mim… mas eu preciso esclarecer algumas coisas… Me ajuda” – era eu te pedindo em clemência para me ajudar a entender.
E você foi muito receptiva e atenciosa – era o seu normal-, conversou comigo… Explicou seus pontos. Parece que nos entendemos, mas não tenho certeza se o assunto teve um ponto final pois não me lembro. 
 
 
 
No entanto, ao levantarmos, num piscar de olhos nos teletransportamos para um ambiente que se parecia com o meu quarto -a perceber pela bagunça. Mas também fiquei na dúvida…. Meus lambes não estavam na parede, minha janela tinha outro formato, meu poster da legalização do aborto havia sumido, o da Marcha Mundial das Mulheres também… Enfim, toda a militância pregada na minha parede havia sumido, porém, haviam ficado os pequenos parágrafos que dediquei à você nos meus momentos de devaneios ao longo das madrugadas. 
 
Ficamos então, paradas no centro do quarto, olhando ao redor. Eu não lembro qual era sua expressão porque ficamos de costa uma pra outra e o quarto rodava, mas sem causar sensação de labirintite, sabe?
Parece que estávamos identificando que lugar era aquele, e porque faltavam partes… 
 
 
 
 
 
Aí, tudo parou. 
 
Você estava de frente pra parede onde começou a ler em voz alta um parágrafo bonito… Lembro que fiquei com vergonha de te ouvir ler o que eu tinha escrito (pois é, sou dessas!).
 

” Acordei com pré-sentimentos uterinos e uma olheira do tamanho da cara, muita sede na garganta e aquela sensação de que lá fora a vida não vai dar muita trégua. rolei do colchão pro chão, fitei o dedo roxo. desde sábado mantive um contato íntimo com a carne. teci na pele as memórias dos meus sentidos -vezenquando confusos mais ainda meus  vou ao banheiro e consto o ciclo: fiquei com uma saudade absurda de você”.

 
No final do parágrafo você me abraçou. Foi um abraço de 20 segundos, desses que a gente não dá em qualquer pessoa por motivos de: afeto. Abraço afetuoso intenso, quero classificar. Foi um desses abraços que liberam oxitocina. 
 
Não houve mais conversa. Nos beijamos porque esse ato transcendia qualquer vocalização de palavras. E assim permanecemos. Não tiveram detalhes sexuais… Vai ver minha mente estava num momento inconsciente de moralismo e tal, preferiu não me mostrar.
O que eu me lembro é de estarmos na cama e eu sentir que você estava insegura com alguma coisa que eu não mencionei o nome depois. Só sei que falei algumas coisas…Dentre elas, te pedi para que não se preocupasse. 
Pedi para que não se prendesse às regras morais que regem os atos sexuais lésbicos… Pedi para que esquecesse as denominações de “passiva” ou “ativa”. Era preciso deixar de lado todas as faláceas que permeavam o mundo lésbico, eu pedi.
 
by François Henri Galland
 
Eu disse, calmamente, que isso não era importante. Pedi sua atenção para os sinais que viriam dos nossos corpos… Era isso que guiaria o nosso momento. O sinal que o meu corpo responde quando há um estimulo do seu, e vice-versa. Regrar os corpos é impedir toda e qualquer reação que poderíamos ter, naturalmente. Condicionar os corpos é tolhir nossas sensações e possibilidades. 
Falei várias coisas das quais eu não me lembro agora… Não me pareceram que foram muitas, mas em resposta, você sorriu e tapou meus olhos com a mão. Entendi seu sinal e permanecemos ali. Outros beijos vieram, longos e calmos.
 
Dali em diante eu não me lembro, o que eu acho muito bonito aliás. 
Acordei com uma sensação boa de que destruir amarras e proporcionar calma era muito recompensador para o meu estado de espírito. 
 
Foi isso.
 
Foi muita coisa, foi bonito, eu achei.
 
 
 
 
 
 
 
PS: Hoje eu me dei ao luxo de não escrever sobre opressões porque: sim, porque às vezes eu não aguento isso tudo e preciso escrever sobre aquilo que sinto e não sobre aquilo que sofro -todos os dias-; isso me dá a certeza de que não perdi certas capacidades humanóides.