Marcha das Vadias de Salvador contra a Transfobia


Já era pra eu ter postado essa denúncia no início do mês, mas as coisas aconteceram como uma avalanche por cima de mim e acabei me demorando. No entanto, entendo que não é “tarde demais” uma vez que minhas companheiras trans* continuam sendo alvo de transfobia por onde passam. Deixo aqui, então, a carta aberta da MdV-Salvador e carta da viviane.v. Leiam e não compactuem com transfobia! O projeto político feminista precisa ser contra a transfobia ou então estaremos fadadas a um  suposto avanço no movimento.

Marcha das Vadias de Salvador contra a Transfobia

Todo ano é realizada, no dia 2 de julho, a Marcha das Vadias de Salvador, que reúne dezenas de mulheres do estado para levar às ruas suas demandas e questionar as imposições do patriarcado na vida das mesmas. A marcha das Vadias é organizada por mulheres residentes em Salvador, mas também conta com o apoio de algumas companheiras do interior, que se reúnem para discutir o andamento do evento. Em uma dessas reuniões foi discutido o fato de a Marcha das Vadias precisar romper os limites da mulher branca, heterossexual, cisgênera, e de classe média e procurar trabalhar as intersecções para contemplar toda a diversidade de mulheres — sejam elas intersecções de raça, classe, orientação sexual ou identidade de gênero.

      Entendemos que é necessário levar essas demandas para as ruas, visto que o fato de não evidenciar-mos as especificidades de cada categoria acarretar no silenciamento e invisibilidade das mesmas. Entendemos que opressões como: racismo, elitismo, lesbofobia e bifobia, assim como transfobia são agravantes das violências as quais estas mulheres estão expostas e, por isso, enfatizamos a importância de abordar esses temas na nossa campanha. Com toda dificuldade, tocamos uma campanha para Marcha de 2014 e buscamos tentar contemplar toda a diversidade de mulheres.
    viviane v., mulher trans, é nossa companheira de longa data e esteve conosco na construção da Marcha. Achamos importante que nossas companheiras tenham voz nesse espaço e que tenham o apoio de suas irmãs e assim o fizemos. Ela teve total liberdade para expressar-se. Porém, logo após a publicação de suas fotos, fazendo a divulgação da Marcha, nossa companheira foi alvo de diversos ataques transfóbicos. Seu perfil do facebook foi denunciado diversas vezes por falsidade ideológica e suspenso — uma forma de usar a transfobia cistêmica para negar a identidade de pessoas trans*. 
Muitas pessoas surgiram com leituras equivocadas de sua colocação e ao menos se propuseram a reflexão e diálogo sobre o que estava sendo dito. Tomaram posturas extremamente violentas, expondo nossa companheira a uma série de agressões verbais e simbólicas graves, e dignas de todo nosso repúdio.
    Queremos dizer abertamente que nós, da Marcha das Vadias de Salvador, jamais compactuaremos com a transfobia e estaremos sempre prontas para receber nossas companheiras trans*, assim como toda diversidade de mulheres, pois entendemos que apenas trabalhando as interseccionalidades destruiremos os pilares de opressões que sustentam o patriarcado e alcançaremos, de mãos dadas, a real igualdade.

    Exigimos respeito as nossas companheiras trans*!

Transfobia não passará!

     Como reafirmamos a necessidade de dar voz a todas as mulheres para que elas possam falar por si mesmas, segue a carta escrita por nossa companheira viviane v. em relação a sua participação na Marcha das Vadias de Salvador e em resposta aos ataques transfóbicos contra a sua pessoa e, também, a todas nós como irmandade.

 

Carta aberta de uma transfeminista vadia

Meu nome é viviane v., sou uma mulher transfeminista.

viviane v. O nome em letras minúsculas, por sua ilegalidade, sua deslegitimação cistêmica, por bell hooks e a energia crítica que dela procuro receber com humildade e responsabilidade. Esta responsabilidade: algo que deve incluir uma análise crítica sobre minhas implicações — ancestrais, familiares, contemporâneas, pessoais — na constituição e reprodução do cistema racista, sobre meus privilégios de acessos, sobre as possibilidades e deveres “de inventar a contra-mola que resiste” por todos os meios necessários e em solidariedades.

Mulher. Mulher trans*, “sujeito” de “divergências” nos feminismos. “Divergências” que, por muito tempo, levam a diversos graus de desinteresse e invisibilização, dentre as pautas de feminismos, em se discutirem e enfrentarem os assassinatos de pessoas trans* — em particular, de mulheres trans*, de mulheres trans* prostitutas, de mulheres trans* racializadas — nos quais o Brasil é líder mundial entre as estatísticas disponíveis (ver os relatórios ‘Transrespect versus Transphobia Worldwide’ – “Transrespeito versus transfobia pelo mundo”, em tradução livre), entre tantas outras violências dos cis+sexismos socioculturais.

Assim como meu nome, minha identidade de gênero trans* não tem a mesma importância estatística que as identidades não trans*. As identidades cisgêneras, noutras palavras. “Cisgêneras”?

As aspas têm caráter político: reconhecer criticamente minha ancestralidade (parcialmente) branca é parte da destruição do cistema racista. Dizer-me “branca”, não. Preferir “homens de verdade”, “mulher genética” e quetais ao invés do simples e elegante prefixo oposto a “trans” — cis — significa não somente reificar biologizações não científicas de gêneros atravessados por culturas e sociedades, mas também marginalizar lutas de pessoas trans* por sua dignidade humana.

Transfeminista. As lutas trans* se nutrem (apesar de tantas exclusões) de energias de feminismos, e os vêm trans*formando também. Manter e reificar perspectivas essencializantes e biologizantes de gênero não é somente uma estratégia política a se problematizar (em detrimento, por exemplo, de perspectivas sensíveis às diversidades existenciais, corporais e intersecionais que atravessam corpos auto+identificados como de mulheres), mas também uma posição política potencialmente excludente.

Historicamente excludente, aliás. E a possibilidade de trans*formar tais premissas essencializantes e biologizantes de gênero está entre as potências críticas dos trans*feminismos que vêm se formando mundo afora.

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  • Fotografias vadias

 

No período recente, venho participando da construção da Marcha das Vadias de Salvador, compreendendo-a como situada em um contexto político muito importante: durante um evento de futebol violador de direitos humanos e intrinsecamente associado a projetos cissexistas, e em uma cidade negra de desigualdades e injustiças racistas, elitistas, “democratas” de coronelices e marvadezas.

Marcha das Vadias, eventos onde a presença de pessoas trans* tem sido debatida (nem sempre de maneira bacana, diga-se, mas ainda assim debates politicamente significativos), uma certa exceção à regra de invisibilizações e deslegitimações de gêneros trans* que ocorrem em diversos âmbitos no cistema. Em algumas destas Marchas das Vadias, processos importantes no sentido do fortalecimento de feminismos feitos por pessoas trans*, e particularmente por mulheres trans*, têm acontecido: em alianças e afetos com inúmeras pessoas cis, em diálogos e aprendizados intersecionais de todas nós sobre vivências trans* e cis, nas possibilidades (ainda insuficientes, mas crescentes) de solidariedades entre pessoas trans*. Alianças, diálogos e possibilidades que não se restringem aos espaços das Marchas das Vadias, mas que neles têm se viabilizado com alguma força (relativa).

A partir desta análise do contexto local e geral das Marchas das Vadias é que decidi realizar, com uma pessoa fotógrafa muito querida, algumas fotografias para divulgação da Marcha das Vadias de Salvador. Com elas, quis trazer três temas, fundamentalmente: “Vadiagens Trans*”, com a proposta de que a marcha seja um espaço seguro para que resistências trans* anticissexistas (em solidariedades com todas mulheres) possam ter a Marcha das Vadias como um lugar político interessante de contestação aos processos de culpabilização das vítimas — temas fundamentais desde a primeira ‘Slutwalk’; “Abaixo Assimilações GGGG”, por uma reflexão sobre os processos históricos de marginalização e colonização das lutas LBTQI em prol das demandas políticas de homens cis gays (de classe média, brancos, etc etc.); e “Autodefesas Contra Cis+sexismos”, como uma proposta de debate sobre as estratégias possíveis que mulheres podemos utilizar no enfrentamento a instâncias cissexistas, particularmente aquelas que nos ameaçam a integridade física e a vida, perpetradas eminentemente por homens cis.

Esta última fotografia (abaixo) é foco das reflexões centrais deste texto.

 

 

 

Esta fotografia foi publicada no grupo de organização coletiva da Marcha das Vadias de Salvador, na página do evento deste ano, e em meu perfil pessoal de forma pública. Junto à fotografia, acrescentei o texto a seguir:

“Marcha das Vadias em Salvador! 2 de julho, a partir das 8h da manhã!

Art. 25 do Código Penal: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art23

Infelizmente, sabemos que o cistema deslegitima, culpabiliza e desampara muitas vítimas de violências de gênero. Precisamos estar todas preparadas, dentro de nossas possibilidades e em solidariedades, para exercer o direito à legítima defesa.

Por todos os meios necessários.”

Os assassinatos apresentados pelo relatório “Transrespeito versus transfobia pelo mundo” são, eminentemente, cometidos contra mulheres trans* e travestis. Estes crimes costumam envolver, com frequência, brutalidade da pessoa assassina e descaso+violências por parte do cistema policial militarizado, racista, elitista. Por sua vez, nas violências perpetradas contra mulheres cis, particularmente nas interseções de raça e classe social, também se repetem processos de brutalidade, descaso e violência institucional.

Estas informações sobre o contexto (de cis+sexismos racistas, cristão-cêntricos, elitistas) em que vivemos é que provocam a proposta fotográfica: se o “cistema deslegitima, culpabiliza e desampara muitas vítimas de violências de gênero” — mulheres cis e trans* e travestis, particularmente –, é importante que reflitamos sobre possibilidades de autodefesa que não sejam tão dependentes do cistema policial ou jurídico, por conta das exclusões e impunidades que institucionalmente promovem.

Cis+sexismos, aliás, talvez seja o conceito-chave para afastar quaisquer dúvidas sobre minhas propostas. Em um artigo acadêmico que escrevi no período recente, “Explorando Momentos de Gêneros Inconformes – Esboços Autoetnográficos“, sobre uma experiência profissional minha analisada autoetnograficamente, faço um esforço para contribuir às reflexões sobre o que poderia ser este conceito (uma busca simples por ‘cissexismo’ também traz, como primeiro resultado, este link que dialoga bastante com minha definição):

O termo ‘cis+sexismo’ é uma tentativa de caracterizar a complexa interseção  entre a normatividade sexista de gênero (produtora cultural das diferenças homem-mulher) e a normatividade cissexista de gênero (produtora cultural das diferenças cis-trans). A cisgeneridade, de forma bastante breve, pode ser caracterizada como as posições normativas/coerentes no segmento ‘sexo-gênero’: são as identidades de gênero binárias, definidas a partir de ilusões pré-discursivas (como a que pressupõe a existência de dois ‘sexos biológicos’ objetivamente identificáveis), e tidas como permanentes. É costume, em nosso contexto histórico, referir-se a pessoas cisgêneras como homens/mulheres ‘biológicxs’, ‘de verdade’, ‘naturais’, ‘cromossômicxs’, etc.

Neste sentido, dada a evidência de que a proposta política de minha fotografia é de que “[p]recisamos estar todas preparadas, dentro de nossas possibilidades e em solidariedades, para exercer o direito à legítima defesa”, e sabendo também que o cistema atua contra nós (ao deslegitimar nossos gêneros trans* ou os corpos negros de mulheres cis, por exemplos) inclusive neste eventual exercício de direito, o centro de minhas preocupações foi (e é) de que dialogássemos sobre que estratégias nos podem ser úteis, enquanto mulheres, para o enfrentamento de todas instâncias cis+sexistas.

As armas brancas com que faço a fotografia demarcam os limites a que esta legítima defesa pode, eventualmente, chegar. Homens cis assassinam covarde e cruelmente mulheres trans* e cis mundo afora, e é por isto que, quando penso em autodefesas, penso em CeCe McDonald, injusta e inadequadamente encarcerada pelo cistema prisional estadunidense ao se defender de violências físicas cis+sexistas e racistas, e em todas as violências de gênero contra mulheres cis que vão sendo silenciadas (às vezes até por conveniências políticas ‘de esquerda’, veja só) por um cispatriarcado normatizante.

As armas servem para nos lembrarmos de que, diante de atentados contra nossas vidas (fundamentalmente perpetrados por homens cis), não devemos excluir a possibilidade de estabelecermos formas de resistência críticas: o corpo que, se necessário/inevitável, reage e se coloca, materialmente, diante da injustiça, em suas possibilidades e limitações. CeCe, mulher trans* negra, é inspiradora neste e em tantos outros sentidos.

Finalmente, gostaria de apresentar dois pontos importantes, reflexões a partir do que venho escutando aqui e ali:

1) Às pessoas trans* que consideram que eu possa ser uma “mulher trans* elitizada”, “diferente de nós”, e que “não nos representa”: primeiramente, quero afirmar meu compromisso de vida em não procurar ‘representar’ ninguém — não no sentido reducionista e colonizatório que busca nos simplificar a todas nós a partir de supostas ‘representantes’ de um ‘grupo social’ com alguma ‘condição’ ‘esquisita/bizarra/diferente/extravagante’. É por isto que meu esforço analítico se propõe intersecional: minhas experiências de vida enquanto mulher trans* de classe média alta, branco-asiática, que teve acesso a recursos financeiros, educacionais e de saúde compõem **uma** experiência trans* entre tantas outras, que não podem ser limitadas a um ‘universo trans’ ou o que seja.

Somos mais que os estereótipos e classificações que nos fazem engolir diariamente. Somos todas diferentes entre nós: não há a travesti, a mulher transexual, a pessoa não binária ‘padrão’. Nossas múltiplas experiências dentro do cistema formam uma diversidade de estratégias de sobrevivência e de luta. Meus privilégios sociais, por sua vez, me colocaram em um cenário específico: um cenário em que, por exemplo, a chave de fenda que carrego em minha bolsa para autodefesa nunca tenha precisado ser utilizada. Para tantas outras mulheres trans* e travestis, suas armas e corpos resistem já desgastados pelas violências cistêmicas. Precisamos de autocríticas e empatias para lutarmos, aprendermos e colaborarmos umas com as outras.

É por estas razões que minha proposta é de que pensemos em solidariedades sobre nossas estratégias de autodefesa: nossa segurança pode se potencializar em coletividade, recusando o paradigma do ‘super-herói invencível’ (uma imagem e epistemologia do cispatriarcado). Quero que meus privilégios sociais sejam mais munição para as lutas contra o cistema, e que as experiências e vozes trans* mais marginalizadas também tenham como encontrar alianças de resistência e expressão: este é um de meus objetivos centrais enquanto acadêmica, e venho tentando seguir neste aprendizado e construção apesar de minhas tantas limitações, apesar das tantas distâncias que colocam entre nós.

Espero, verdadeiramente, que possamos dialogar mais e a partir de perspectivas solidárias e de coletivização dos esforços de resistência. Que façamos mais o exercício crítico de analisar que grupos políticos têm intere$$e em nos dividir e em nos cooptar para ganhar poder e influência política (ventos sopram ‘gggg’), ao mesmo tempo em que nos dão migalhas de cidadania e direitos e exigem louvações de agradecimentos acríticos.

Espero, enfim, que notemos as diversas (infinitas?) formas que o cistema/cispatriarcado nos violenta a cada dia, e vejamos nas outras pessoas trans* uma possibilidade de aliança, não uma competição pelos ‘agradinhos’ do cistema vindos das pessoas cis, brancas e cristãs.

2) Às feministas trans*-excludentes de diversos tons e matizes: espero, sinceramente, ter afastado quaisquer das hipóteses de que eu, uma mulher, estaria ameaçando outras mulheres (cis ou trans*) ao empunhar uma faca de cozinha e uma chave de fenda e ao propor autodefesas contra cis+sexismos.

Espero que tenha ficado mais explícito, por exemplo, que as violências cis+sexistas contra as quais fosse preciso utilizar uma faca de cozinha e uma chave de fenda são fundamentalmente perpetradas por homens cis. Neste sentido, enquanto proposta fotográfica, minha postura como mulher que enfrenta cis+sexismos através de autodefesas é a de refletir sobre casos como o de CeCe McDonald, avaliando criticamente possibilidades e cautelas de considerarmos estas estratégias em nossas vidas.

Finalmente, acredito que seja relevante enfatizar que quando penso que nossas estratégias devem se debruçar sobre “todos os meios necessários”, isso vale tanto para pensar nos nossos ‘limites máximos’ (a resistência armada, talvez), quanto para considerar reações proporcionais e estratégicas às violências cometidas contra nós. Ou seja: contra um cistema brutal, até as resistências armadas devem ser consideradas, mas precisamos também pensar em outras estratégias inteligentes (vídeos, posts em blogs, conversas pessoais) para enfrentar todos os tipos de violência que nos ocorrem.

Os meios necessários à destruição do cistema/cispatriarcado são inúmeros, e talvez nunca os tenhamos suficientemente. Entretanto, para argumentar contra as perspectivas trans*-excludentes de diversas feministas (várias delas autodenominadas “radicais”), bastam-nos honestidade intelectual e visão crítica.

Já estamos vencendo algumas injustiças cistêmicas, com e sem perfil de facebook. E, vencendo ou não, seguiremos resistindo. Se não por nós, pela memória das lutas de tantas de nós, trans* de tantas interseções.