Eu não consigo te desejar feliz dia dos pais


Pai,

hoje eu não vou te ligar. Não vou te desejar um “feliz dia dos pais”.  Acho que quem tem que fazer isso são teus filhos e filhas. Eu não.
Eu fui um acontecimento repentino na sua vida. Não fui planejada e nem querida por você. Quando eu nasci, não mudei sua vida. Mas eu mudei a vida da minha mãe. Ela sim deu a cara à tapa e pariu uma criança que ninguém poderia descobrir que era sua filha também. Bastarda.

Cresci sem falar pros amiguinhos de escola, o que meu pai fazia. Eu não sabia. Você me falava de coisas que fazia mas eu achava tudo bem confuso… Paciência nenhum em me explicar, você chegava em casa – três vezes no ano-  por volta da meia noite; as luzes do farol iluminavam o portão. Eu corria lá pra abrir. Quando você estava em casa, era tudo entregue na sua mão. Nada podia ficar desorganizado. A cachorra não podia ficar na sala… eu ficava triste quando você me mandava fechar a porta e a Teca continuava lá fora sozinha. Normalmente, ela ficava com a gente na sala… assistia tv e tudo. Eu adorava aquela cachorra, tão carinhosa. E você nunca fez um gesto de carinho nela…. E nem em mim…. Digo, eu te dava um abraço na sua chegada e outro quando você ia embora. Na minha memória, nada afetuoso acontecia entre esses dois momentos.

Me acostumei com a sua ausência porque não tive escolha. E confesso que lidei até que bem com isso, porque eu poderia ter surtado… Ou ter passado por uma adolescência trash, descontando toda raiva em mim e no mundo. Podia. Mas não. Ao invés disso, fui guardando em mim toda mágoa por ver um homem omisso e irresponsável querendo ditar as regras de uma casa que NÃO era dele, de uma família totalmente vulnerável e frágil, que não pertencia a ele.  Família esta, cuja base foi e sempre será minha mãe, que se mantém firme até hoje segurando vários rojões.

Com pouco dinheiro e uma criança pequena, minha mãe precisou de você pra me manter viva e com saúde. Mas quando você decidia que não ia mandar dinheiro naquele mês, aí era ela quem tinha que cortar um dobrado pra conseguir pagar as contas, comprar comida. Até hoje você trata minha mãe com um desrespeito inigualável, pai. Você não se importa. Por todos esses anos, fica nítido que você só tava ali porque minha mãe ficou em cima, te pressionando à cumprir seu papel e a ajuda-la (nada mais justo). Nunca foi por vontade própria. Nunca fui por amor à uma criança. Eu pelo menos nunca senti isso. Suas atitudes só me confirmavam o desprezo velado.

” — Qual seu nome inteiro?
  — Jéssica Ipólito
  — Que mais?
  — Só isso…”

Acho que perdi as contas do quanto as pessoas me cobravam um segundo nome. E nem era da conta delas, mas sempre vinha comentários desse tipo… O básico. Já ouvi coisa muito desagradável. Eu juro que só fui entender o porque você não tinha me registrado, recentemente…. De uns 4 anos pra cá. Antes, eu não sabia. Eu não entendia, pra falar verdade. Achava que era ok já que ninguém nunca me disse que isso era errado.
No entanto, você nunca teve coragem de atestar ao Estado que era pai dessa criança. Você nunca se preocupou no que isso poderia me causar e se preocupou apenas com a sua vida. Se preocupou em me esconder de todas as formas, para que eu não estragasse seus planos; pra que eu não fosse a forma viva da decepção que sua família sentiria de você por tê-los enganado tanto tempo.

Ah pai, eu não tenho vontade nenhuma de te ligar. Nem pra saber se você está vivo. Te chamo de ‘pai’ como quem cumpre uma mera formalidade e não que isso esteja carregado com algum sentimento.

Depois que me irmão morreu, minha mãe foi mergulhada num mar de depressão profunda. Acredito que esses foram os anos mais tristes das nossas vidas e você se quer soube disso. Não bastasse essa mulher ter perdido o filho, ela também perdeu a casa. Você, o único que não deveria fazer isso com a gente,  foi aquele que ficou sentado vendo o circo pegar fogo.

Eu lembro que era durante a semana, numa manhã super ensolarada. Eu estava em casa sozinha (como eu sempre estive desde 4 anos, porque uma mãe solteira e pobre, ela ensina a filha pequena a não usar o fogão e não sair com estranhos na rua) e alguém bateu no portão. Fui ver quem era, e pra minha surpresa, era um homem engravatado com um papel na mão. Não demorou e um caminhão baú foi encostando na frente do portão maior. Liguei pra minha mãe e falei pra ela voltar correndo pra casa.

nunca vou conseguir esquecer isso. O choro da minha mãe, o desespero dela ali, vendo o sofá, o armário, as camas, sendo jogas naquele caminhão. Estávamos despejadas. Sem aviso prévio, nem nada. Você não fez o que prometeu e aquela casa foi à leilão. Você prometeu que não perderíamos a casa. Você prometeu e não foi uma vez só não. Minha mãe foi convencida disso e estava tranquila. De repente, o nosso chão não existia mais. Nossa vida mudara completamente. E a mulher que estava em depressão pelo filho, agora também estava duplamente depressiva por não ter mais onde morar e ter que descobrir um novo lugar em menos de 2 horas.
O mais absurdo e a prova cabal de que você nunca se importou mesmo, foi na hora que minha mãe te ligou, desesperada, e você disse pra ela arrumar algum lugar e que você ia resolver isso. Mentira! Você nunca resolveu. Nem retornou a ligação no mesmo dia. Ela, novamente, se virou como pode, carregando a filha, os móveis, e um sentimento de rejeição que eu não posso descrever. E eu ali, pai… Sendo parte da desproteção, sendo a peça principal daquele enredo perverso e tortuoso. Se minha mãe tivesse optado por abortar, nada daquilo estaria acontecendo. Sua indiferença era comigo mas você puniu minha mãe também.

Como esperam que eu tenha alguma coisa pra falar hoje a quem só me causou sofrimento? Como esperam que eu abra minha boca e diga “Feliz dia dos Pais” ao homem que deixou absolutamente tudo às custas de uma mulher? Como se o problema fosse só dela?

Quando fiz 19 e estava em São Paulo, fui até à Defensoria Pública do Estado e abri um processo de reconhecimento de paternidade contra você. Durou dois anos até  eu conseguir que você colocasse seu nomezinho lá na minha certidão de nascimento. Fiz questão de ir até fim, até conseguir, porque era a minha “vingança” pessoal. Você ia SIM ter seu nome lá, te denunciando e te apontando como pai. Não era mais você quem decidia isso. Não, não mudou nada depois dessa alteração (além da chatice de trocar documentos) mas foi satisfatório ter conseguido aquele documento.E eu quase desisti nesse período todo, sabe… Porque você com toda sua influência num judiciário capenga, fez com que eu tivesse mais trabalho em manter esse processo aberto. Depois de 19 anos, você ainda não se importava… E aquele meu gesto ficou velado entre nós, cabendo apenas aos nossos advogados resolverem. Eu não opus. Não tinha o que discutir com você, nunca senti vontade,  na verdade…

Isso tudo passou. Faz uns dois anos que não te vejo? Sei lá… Não me lembro mais… Depois de um tempo as feridas secam e fecham mas a cicatriz ainda dói. E graças a essa data capitalista, sou obrigada a lembrar de que ela nada vale na minha vida, sou obrigada a lembrar da negligência paterna que fez um estrago gigantesco em mim e na minha mãe e que marcou nossas vidas pra sempre.  Graças ao dia de hoje, sinto essa avalanche de obrigatoriedade de enaltecimento dos pais por um dia, como se tudo de ruim que ele fez, devesse ser esquecido… E no lugar das lágrimas, um presente. Como posso presentear quem me causou tão mal? Impossível. Não se passa por cima de tudo isso por causa de uma data, pai…. Então entenda os meus motivos e não me cobre depois “Porque você não ligou?”.  Se tem alguém que merece alguma felicitação hoje, esse alguém não é você.

Eu não consigo te desejar feliz dia dos pais, Pai.

 

4 Comments

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  1. 1
    eve

    eu ainda não quis ter o meu “pai” na certidão. ele nunca esteve do meu lado quando eu precisei, nunca nem lembrou de se importar.
    no final, sou filha só da familia da minha mãe. o outro lado, o lado que julgou e ofendeu a minha mãe. o lado que virou as cotas, o lado que deixou ela sozinha na rua com um bebe a tiracolo, nunca nem lembrou que eu existo.
    é ruim não ter uma parte da minha familia, é.
    é mil vezes pior fingir que nada aconteceu só pra fazer parte de uma familia patriarcal.
    BTW, agradeço todos os dias que no fim das contas, fui parar em uma familia que me ama, que mãe solteira não é sinonimo de lata de lixo. por isso, fico feliz de não ter nada a ver com a minha familia paterna hipócrita e crentelha

  2. 3
    rodrigo batista

    uau Jés! infelizmente alguns homens de pai só tem o título
    mas como você disse, voce tem sua mãe, e quando percebe que não tem carinho a dar a ele, tem o dobro pra ela, que merece.
    parabéns pelo texto

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