Depois de ter você, pra que querer saber que horas são?


Com o corpo banhado e limpo, faço uma pausa para observar a cama a minha frente que horas atrás Ela repousava. Vagarosamente vou me aproximando enquanto minha memória projeta no vazio da superfície da cama, como hologramas nítidos no desejo de revê-lá, a sequência de cenas que formam o todo daquele momento mágico que passamos juntas.
autoria desconhecida

autoria desconhecida

Me deito. Nua. Gosto de dormir assim. Mas ela ressignificou o meu repouso, que antes era sozinho e descomprometido. Hoje, é saudosista do prazer, repouso no tesão que suscita agora a penumbra da noite em meu quarto, desenhando no canto esquerdo da cama a imagem dela deitada, mal coberta pelo lençol estampado de flores. As luzes da rua, dos prédios vizinhos, do poste de iluminação do viaduto, compuseram uma majestosa cenografia improvisada especialmente para aquele momento que adentrava pela janela. Era um degradê tênue que iluminava aquela mulher de cima para baixo, e vinha iluminando muito mais a lateral de seu corpo próximo à janela: das pontas do black volumoso o reflexo dos fios pretos brilhando, o pescoço curto da pele delicada, me parecia a fonte de todo cheiro que era distribuído e emanado pelo corpo dela.  Esmorecendo calmamente, as luzes se renderam ao escuro quando se depararam com os seios dela delineados em uma curva desafiadora a me mirar, como quem convida com afetuosidade para um abraço com a boca. O escuro se fez pelo corpo dela, vívido e quente, da epiderme macia e de pouco pêlo naturalmente;  nesse momento  a escuridão do quarto já não tinha espaço: era tudo dela. Eu era toda dela. E Ela sabia perfeitamente disso. Aquele momento foi contemplado por mim enquanto a queima tóxica de um cigarro acontecia enquanto eu estava apoiada na beira da janela. Essa foi, dentre tantas, a cena que eu mais desejei que não acabasse  nunca. Embora agora na lembrança ela pareça muito mais longa do que o curto tempo que anunciava o final do cigarro;  estendo esse cena para dar caminho à outras memórias passarem por ali.
by Zanele Muholi

by Zanele Muholi

Farejei minuciosamente os travesseiros que acolheram a cabeça dela àquela noite, na busca pelo perfume que me inebriou desde o princípio de tudo. De um lado ao outro da fronha, eu oscilava entre a esperança de estar realmente sentindo novamente o cheiro dela e a desconfiança de mim mesma em estar realmente fazendo aquilo. Como pode um desejo avassalador desses investigar travesseiros, revirar lençol, caçar na própria boca o gosto da outra!? Que loucura!  Detetive que sou, busco até o fim uma prova mais concreta de que estou certa daquilo, de que em alguma parte há de ter mais do que minha memória olfativa desesperada… Achei! Encontro, enfim, minha prova bruta do querer: o perfume do corpo dela impregnado na fronha, uma porção concentrada do cheiro embriagador no travesseiro que ela usou… Tomo à conta gotas nos primeiros minutos. A saudade é tamanha que não me aguento, afundo minha face na almofada mole como quem busca sedenta por mais do mesmo, misturo minha respiração com aquele cheiro pouco no desespero de tê-lo até o final, só pra mim. Me emociono.  Meus olhos soltam semelhanças do mar, me sinto  um paredão rochoso abrindo uma fenda pequena e misteriosa de minha superfície, onde passa a jorrar água de dentro. Me agarro naquele travesseiro como se fosse a redenção aquele resultado da busca por senti-la novamente ali. Continuo emocionada, transbordo pelo canto dos olhos sem vergonha alguma, sem culpa alguma. Eu pude viver algo verdadeiro e bonito, uma troca genuína de alta sensibilidade corpórea e intelectual; um ato de confiança e afetuosidade que nunca havia tido antes. Eu tento traduzir mas me falta vocabulário para tal. E eu queria esmiuçar  os pormenores daquela noite, que está tão fresca na minha memória, porque me ajuda a sentir de novo que tive um momento assim, intenso e de pura entrega.
http://theblacklesbiancorner.tumblr.com

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Ela é um ser supremo encantadora que deve mesmo passarinhar por aí, muito!,  arrebatando a todas e todos também, se assim desejar. Não tão somente carnal, mas principalmente fabulosa intelectual (um equilíbrio que naturalmente há nela), vê-la por aí ativamente política e contundente nas colocações, me causa um frisson na mente de querer segui-la também, porque se faz referência no pensar, notável nos estudos daquilo que lhe diz respeito, e não somente a ela, mas sobretudo à sua comunidade social.
Um adjetivo que pode defini-la também é: apaixonante! Em todos os sentidos.
E agora, já no final da madrugada, me resta a felicidade de suscitar em meu corpo a lembrança prazerosa dos sórdidos detalhes que minha memória reserva para os momentos mais íntimos.

4 Comments

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  1. 1
    Anonima

    Esse foi o texto mais bonito que já li!!! É lindo e me trouxe uma pessoa tão amada, na memória, que se não tivesse sido escrito por você, poderia dizer que foi ELA quem o escreveu!!!

  2. 3
    Patrícia

    Que seja mar, que seja memória, que seja sempre intensas suas histórias e que ela passarinhe até você ou você flutue ate ela.
    Parabéns.

  3. 4
    Anonimus

    Impressionante! A música… se vcs não viram precisam ver… A Maria Betânia cantando com a Adriana Calcanhoto… é a interpretação mais lésbica e apaixonada da MPB!!! E eu fiz questão de mostrar pra ELA, pra dizer, demonstrar o quanto era e É importante na minha vida. Nunca haverá mulher mais amada… mesmo que jamais possamos ficar juntas.

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