A flor dos meus anos, meus olhos insanos de te esperar: A solidão afetiva da mulher negra lésbica


Casei aos 19 anos. Com outra mulher negra, e na época, eu não entendia politicamente o que isso significava para além de ter uma companheira. Eu tinha acabado de sair da casa senhora minha mãe e cai no redemoinho do mundo, que me triturou até os ossos! Não que agora tenha amenizado, mas com certeza, ter consciência política do que eu sou me propiciou uma reviravolta gigantesca na minha vida, um alerta geral e uma paz interior que nunca havia tido antes. Hoje eu olho pra trás e entendo tudo com outros olhos… Lembro de algumas  situações racistas que passamos juntas na rua e que eu não tinha noção! Lembro das pessoas perguntando se éramos irmãs ou primas, ou das vezes em que as pessoas nos olhavam com ar de estranhamento na fila do mercado, por exemplo. Outras coisas apagaram da minha memória, e talvez seja até bom assim. Me reservo no direito de manter as coisas boas dessa época. Dito isso, depois desse casamento, não namorei mais. Sou nova, comecei a desenvolver minha sexualidade depois doas 18 anos, me entendi lésbica aos 19; também não sou a mais pegadora no rolê, e menos ainda uma pessoa fácil de lidar -confesso-. Mas será que é somente por isso que até hoje eu não consegui firmar um relacionamento saudável?! Porque  até tive  um relacionamento mais longo, que foi cheio de idas e vindas por conta da não-monogamia e responsabilidade afetiva, tanto de minha parte quanto da outra envolvida. Resumindo: essa relação me serviu pra abrir mais chagas do que fechar as que eu já tinha. Senti que depois disso, fiquei muito mais insegura, fechada e inacessível. Passei um longo tempo sem ficar com alguém, quero dizer beijar na boca, sabe?! Um período quase que de celibato porque eu simplesmente parei de pensar sobre afetos e me dediquei à outras tantas coisas na minha vida. Na época, achava que fazer isso, ignorar o que eu estava passando, seria de mais valia do que ficar quebrando minha cabeça. Trouxa fui de não resolver essa minha questão. Mas como eu resolveria isso?! Resp: Tentando uma nova relação! Ahhh como isso é difícil… Nossa! Há um tempo atrás até tentei, mas em vão (por uma série de motivos). Novamente, estava eu na estaca zero e com a sensação de “isso é impossível pra mim”. Eu, que sou tão louca e impulsiva, não paro quieta, vivo procurando novidade pra me ocupar, vivo procurando o que fazer pois se não for assim eu piro facilmente! Culpa do meu signo, alguns vão dizer. Culpa da minha falta de coragem, eu digo.  Culpa, culpa, culpa! Tento amenizar essa questão, mas eu realmente me sinto muito culpada por isso:  por não conseguir estabelecer um relacionamento gostoso, que eu possa ser eu mesma, me sentir amada e desejada, e também amar de desejar a outra ao meu lado. Mas me pego pensando e desconstruindo essa culpa, que não contribui em nada e, aliás, só me destrói aos pouquinhos.
Será que é só, exclusivamente, culpa minha essa dificuldade em me relacionar com as outras?! Será que eu sou assim tão difícil, e portanto, nenhuma mulher vai querer ficar comigo mais de uma noite? Será que eu não vou conseguir constituir uma família? Será que não sou boa suficiente pra andar de mãos dadas na rua, apresentar aos amigos? Será que não sou digna de fazer parte de planos futuros da outra? Será?

by Laurence Jaugey-Paget, Untitled, 1990

by Laurence Jaugey-Paget, Untitled, 1990

Não sou parâmetro pra nada, tampouco acho que o que vivo é exclusividade minha,  então me ponho a observar minhas amigas: poucas tem namoradas. Conto nos dedos de uma mão aquelas que estão em relacionamentos longos. A maior parte delas estão sozinhas, assim como eu. A maior parte delas também se indaga sobre essa solidão que ecoa baixinho dentro da gente e só sai em momentos muitos pontuais, de desabafo. E depois seguimos adiante com nossas vidas porque é preciso. Algumas das minhas amigas, que são pretas e lésbicas, gostariam de estar namorando agora. Gostariam de ser a opção para além do sexo. Sexo esse que nos vem com muita facilidade, afinal, ninguém tá morta, mas também vai embora fácil. Mas não vivemos só de sexo, só de beijos no canto da balada, não vivemos só dos beijos de carnaval. Desejamos o companheirismo, o carinho em suas diversas manifestações, desejamos mãos dadas na praça; àquela cumplicidade de ter certeza que vai encontrar na outra apoio mútuo, ao menos um colo aconchegante; desejamos conchinha embaixo do cobertor quentinho em dia frio, e em dia de calor também! Desejamos muito mais do que uma noite, mas o que temos é tão somente algumas horas onde precisamos nos dar por satisfeitas com isso.

 

by Parminder Sekhon, Untitled, 1994

by Parminder Sekhon, Untitled, 1994

 

Essa semana a Revista Forum lançou uma matéria muito rica sobre a solidão da mulher negra, você pode acessar aqui. Intitulada “A solidão tem cor”, o texto conta a colaboração intelectual das pesquisadoras Ana Claudia Pacheco,  doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a tese Branca para casar, mulata para f…., negra para trabalhar”: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia, e também a Claudete Alves, mestre em  Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) com a dissertação A solidão da mulher negra – sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São PauloDelineando com muito cuidado, as autoras Jarid Arraes e Anna Beatriz Anjos, levantam o histórico racial da condição da mulher negra brasileira, que foi destituída de seu corpo-intelecto-prazer com o processo escravizador ao qual fomos submetidas, cujas consequências permanecem até hoje em nossas vidas. Sem precisar recorrer à acadêmicos, olho para minha mãe que até hoje é uma mulher solitária. Passou a maior parte da vida dela completamente sozinha, sendo responsável por absolutamente tudo. Uma história recorrente na vida das mulheres negras. Destaco abaixo um trecho da matéria pra pontuar o privilégio branco que é latente e que se reproduz nas relações afetivas, sem sombras de dúvidas:

“(…)A situação de vantagem em que a mulher branca se encontra em relação à negra no mercado matrimonial, sobretudo em relação aos homens pardos e negros, é evidente. “Isso é uma pista segura de que há a interferência social e histórica que termina também sendo um dos fatores que tira, para além de todos os outros direitos da mulher negra, o direito ao amor”, destaca Alves.(…)”

Ruth & Zenobia, by nayahri

Ruth & Zenobia, by nayahri

Essa matéria reviveu uma dor em mim e um medo também. O medo de ficar sozinha pra sempre, vivendo de pedaços, migalhas. Mas como uma amiga me disse “é preciso superar o medo para que ele não te tome por completo e você estagne”. De fato, mas eu sinto que esse medo não é só meu e por isso eu trago nesse texto a proposta de investigar a afetividade das lésbicas negras. Não encontrei nenhuma pesquisa acadêmica sobre isso (se alguém conhecer, pfvr comenta aqui!), tampouco discussões políticas fazendo o recorte de orientação sexual.  É preciso ter muito cuidado mesmo para tocar nesse assunto, pois envolve muitas questões que academia nenhuma dá conta. Por exemplo, como lidar com o fato de que já somos rechaçadas dentro de casa, a partir do momento em que expressamos nossa lesbianidade?!
A dificuldade que muitas passam no trabalho, na escola ou faculdade, por ser o que é?!  Se não conseguimos nos posicionar como lésbicas perante a sociedade, como vamos conseguir uma companheira? Se somos violentadas dentro de casa, de onde tiramos forças para assumir um relacionamento? Se somos ameaçadas de demissão pela desconfiança da nossa orientação sexual, como podemos exerce-la? São muitas questões que perpassam essa questão pungente. Mas acho que um passo precisamos dar. Porque já iniciamos nossas vidas afetivas com mais solidão do que companheirismos?! Porque nos incumbem, desde jovens, a dar conta de conselhos amorosos para vida de outrém, quando a nossa se quer existe?! Porque somos nós que ficamos de canto toda vez que é pra ter um relacionamento? Somos nós as culpadas? Minhas amigas também são difíceis de lidar? São seus signos e ascendentes? Acho que tem muito mais aí que a gente não tem dado conta de falar. A solidão da mulher negra é, por vezes, levantada por um viés heterossexual, sendo investigado apenas aquelas que se relacionam com homens. E a bissexualidade da mulher negra, como fica? A lesbianidade, como existe? Muitas perguntas, zero respostas – por enquanto.

 

GayCouples 045

Stephanie and Monica, Boston, MA, 1987. from Sage Sohier’s At Home with Themselves: Same-Sex Couples in 1980s America

A heterossexualidade compulsória sempre nos enfiou goela abaixo um modelo afetivo de relacionamento, que é voltado para o homem, retirando toda e qualquer agência de desejo afetivo pelo mesmo gênero que possamos ter e, por termos esse histórico latente racista e misógino,  nos colocou ao longo de séculos – enquanto mulheres negras – como meras reprodutoras de pequenas crianças a serem escravizadas, e também como um produto sexual a ser consumido pelo homem branco. Nunca houve uma brecha para nos voltarmos à nosso desejo, à ideia de que possamos talvez desejar outra mulher, e não um homem. Portanto, a lesbianidade negra chega demarcando uma ruptura brutal com heterossexualidade compulsória racista, uma vez que rejeitamos os homens em todas as instâncias: do afetivo ao sexual, da reprodução obrigatória à servidão. Rejeitamos também a maternidade compulsória, que prega que toda mulher só irá se realizar quando mãe. Nós nos realizamos enquanto lésbicas, podendo ser mãe ou não. Inclusive, há muitas mamães lésbicas por aí,  quebrando de novo o mito de que as nós “nunca” poderíamos ser mães, ou “onde já se viu você ser lésbica?! Você é mãe!” Um VRAW atrás do outro nós damos, pelo fato de existirmos e sermos dissidentes da heteronorma racista.

 

Elaine Harley, 43, graphic designer & Mignon R.Moore, 42, professor at UCLA. Togetter for 11 years, married in New York City in March 2012, live in Los Angeles. By Peter Hapak

Elaine Harley, 43, graphic designer & Mignon R.Moore, 42, professor at UCLA. Togetter for 11 years, married in New York City in March 2012, live in Los Angeles. By Peter Hapak

Um tempo atrás escrevi sobre a imposição de relacionamentos afrocentrados. Vejam bem: IMPOSIÇÃO! Eu odeio imposições, não é atoa que luto contra todas as merdas impostas diariamente, né. Mas houve uma época em que relacionamentos interraciais passaram a ser alvo de rechaço na web, e discussões sobre a cor da pessoa que a mulher preta estava, foi mote de textos e posts no facebook! Isso me deu nos nervos! Escrevi sobre a agência da mulher negra lésbica em estar com uma outra mulher, onde quem escolhia era ela. E questionei os relacionamentos afrocentrados que não pautavam uma desconstrução da reprodução do machismo, da reprodução de racismo; que não se questionava sobre a posse e o ciúme que enclausura muitas das vezes… Enfim, relacionamentos que buscavam somente, e tão somente, a cor da pele para estabelecer-se. Jamais vou negar a resistência, o ato político que é duas pretas juntas, namoradas, casadas, amigadas, seja lá o que for sinônimo de estar juntas. Não há o que se questionar que uma relação afrocentrada é um ataque direto ao sistema racista que visa miscigenar para dizimar com a população negra. Mas também não quero deixar passar batido que num cenário como este que vivemos, de brutal solidão e violência, não temos realmente condições de ficar escolhendo a dedo e medindo melanina quando uma paixão brota e um amor desabrocha. Por isso, meu foco não é questionar relações interraciais, mas sim, levantar a bola do porquê somos tão preteridas entre nós mesmas. Porque, assim como as negras heterossexuais, somos preteridas pelas lésbicas negras? Porque não somos prioridades quando o assunto é afeto? O amor não tem cor? Será? Eu vejo com mais constância casais lesbianos de mulher preta com branca. E poucos que são o contrário, preta com preta. O ponto aqui é levantar o questionamento dentro da comunidade lésbica negra, do porquê olhamos tão pouco para aquelas que são como nós, porque consideramos tão pouco que elas possam ser nossas companheiras, e acabamos com uma mulher branca no final das contas. Não esperem de mim por em cheque o relacionamento interracial aqui, eu realmente passo longe de fazê-lo com juízo de valor e moralismos.

by Zanele Muholi

by Zanele Muholi

 

Afim de dialogar com vocês e entender isso,  eu pensei em um formulário simples de perguntas, que pode ser respondido anonimamente ou não, para que vocês possam me ajudar a fundamentar essa questão e falar mais sobre isso.  Uma questão tão dolorida e pouco tocada, porque mexe com nossa estrutura emocional, de ponta à ponta, mas que eu percebo que essa é uma das feridas que se alargam mais dentro da gente, enquanto temos que lutar diariamente contra o racismo. Se não falamos, se nos mantermos caladas, se não assumimos que o sentimentos quando estamos com uma mulher branca, o que sentimentos quando estamos com uma mulher preta, o que sentimentos quando estamos sozinhas, não poderemos avaliar verdadeiramente os impactos do racismo nas nossas vidas, nas nossas relações.  Não acho que precisamos esperar alguma/um acadêmico trazer esse debate à tona, por isso o faço aqui. Não é uma pesquisa, é mais uma conversa. A metodologia é a nossa vivência, as referências são vocês, nós, que nenhuma instituição tira. Nós precisamos dar um passo, juntas. Por isso eu peço a gentileza de todas as lésbicas negras, das jovens às mais velhas, que preencham com sinceridade o formulário e envie pra mim. É simples, com a maioria das perguntas abertas. Eu quero saber como vocês enxergam essa questão, o que sentem a respeito,  se sentem preteridas, como se sentem… Enfim. Quero saber mais de vocês, pretas lésbicas, pra gente poder se enxergar mais também! Pra nos olharmos como uma possibilidade afetiva-sexual, também! Pra não ficarmos abandonadas afetivamente achando que é culpa nossa.

Você pode acessar o formulário clicando aqui. Ah! Eu também peço a gentileza de vocês divulgarem para amigas e conhecidas, nas suas redes sociais e tal. O facebook me bloqueou por 30 dias da rede, denunciaram fotos minhas que não continha nudez, mas o facebook é misógino e me botou de castigo! Por isso eu conto com a ajuda de vocês pra esse formulário chegar até outras pretas da rede.

 

Um beijo!

 

by Annie Gonzaga (Salvador, BA)

by Annie Gonzaga (Salvador, BA)