Motorista, boa tarde! Abre a porta do fundo por favor?


Essa é a frase-título que preciso falar para tentar subir no ônibus, porque a roleta me aperta tanto que eu resolvi parar de me forçar à esse constrangimento público. Parece que todo mundo resolve te olhar quando você vai passar pela catraca, até quem estava com a mente lá longe de repente se volta pra você! É bizarro essa sensação e eu cansei. Enche o saco ter que passar todo dia por isso.  Passei a entrar pela porta do fundo do ônibus: às vezes eu não peço ao motorista, se lá atrás a porta se abre eu já tô esperta pra subir sem precisar falar nada. Mas quando a porta está fechada, eu tenho mesmo que pedir, porque o poder de conceder minha entrada ou não está nas mãos do motorista, literalmente! Morando na cidade Salvador, fiquei passada com o tamanho das catracas. São estreitas demais! Dá pra ver a dificuldade em rodar naquilo até quem não é gorda, imagine pra quem é grandona como eu?! Muito surreal vocês podem pensar, mas não… É real mesmo, são pequenas. E o mais absurdo de tudo sintetiza-se na figura do motorista que constantemente me olha com estranheza quando peço para abrir o fundo. Quando não só me olha, é capaz de dizer que estou errada fazendo esse pedido! Recentemente, eu e minha namorada brigamos com o motorista porque ele ficou reclamando eu ter entrado pelo fundo. Disse que era pra eu ficar na frente, que não tinha motivo pra ir atrás e uma série de outras coisas que nem vale a pena reproduzir aqui. Nós não ficamos quietas! E esse foi o maior susto, porque ele não imaginava que fôssemos responder… Estão acostumados à serem ouvidos, e quando duas mulheres pretas gordas vão pra cima falando, argumentando o porquê eu poderia SIM entrar pela porta de trás, aí o negócio muda de figura e parte-se pra baixaria. Nesse dia em específico foi um bate boca danada até o ponto que descíamos. É desgastante essa situação porque tudo poderia ser evitado se o motorista tivesse conhecimento de duas coisas básicas:

1) LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015.  Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Por essa lei, eu sou considerada pessoa com mobilidade reduzida:

aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso;

 

Muito embora minha mobilidade esteja muito bem obrigada, pois fico mais tempo em pé do que sentada no ônibus e não chego em casa cansada só por isso, eu entendo o motivo da categoria OBESO estar aí! Pois vou assumir essa pecha uma vez que quero ter paz para viajar no ônibus sem ter que explicar lei ou responder motorista mal educado, além de que, não é só meu umbigo sujo que está na roda… Isto se trata de uma coletividade, de pessoas!

2) LEI MUNICIPAL Nº 7201/2007. DISCIPLINA O ACESSO NOS TRANSPORTES COLETIVOS, REVOGA A LEI Nº 6119/2002 E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

Art. 1° – O acesso pela porta de desembarque dos ônibus urbanos,convencionais será permitido exclusivamente, ao policial militar fardado, limitado ao número de 02 (dois) por veiculo, ao idoso com mais de 65 (sessenta e cinco) com apresentação da carteira de identidade civil original, à pessoa com deficiência e acuidade visual nula bilateral, aos deficientes físicos com dificuldade de locomoção, atestada por perito médico e comprovada sua carência econômica.

 Parágrafo único – O acesso pela porta de desembarque também será facultado à gestante e ao obeso que não tiverem condições de passar pela catraca, devendo estes pagar e registrar as suas passagens junto ao cobrador.

Eu sou essa pessoa que não tem mais condições psicológicas de passar pela catraca do ônibus e quero entrar pela porta do desembarque, pagar minha passagem e seguir minha vida. Essa sou eu todo dia tentando poupar meu psicológico, minha sanidade mental, mas ninguém deixa. Entrando por trás também todo mundo olha, mas eu já entendi que isso não pode me impedir de acessar os lugares; eu preciso viver, ir e vir, aproveitar a cidade, consequentemente, aproveitar minha vida (que depende muito da cidade também, logo, da mobilidade urbana), então os olhares já não me assustam mais. Sempre estarão lá! Ficar na frente, naquele espaço pequeno reservado à toda galera de atendimento especial (idosos, gestantes, deficientes, com criança de colo, obesos) não dá! Os ônibus em Salvador tem essa parte da frente muito pequena, fica todo mundo amontoado na frente… E pra que eu ficar lá na frente se no fundo tem espaço?! Porque passar por essa situação se posso evita-la indo lá pra trás, independente de ter banco vago ou não, o especial nem se fala que eu não faço questão dele. Mas eu preciso fazer questão de ENTRAR NO ÔNIBUS! Não posso me dar ao luxo de não usar transporte público, essa não é uma opção pra mim. Mas as frotas de ônibus estão nada preparadas para lidar com isso… Quiçá estão preparadas para pagar decentemente as pessoas, não é mesmo?! Imagine… Mas tem algo muito precioso sendo guardado: A INFORMAÇÃO!
Nem eu sabia que tinha lei instituindo meu direito de entrar pela porta do desembarque, fui ver isso agora… Porque precisei ir atrás, só o meu tamanho não está bastando para sensibilizar as pessoas da necessidade de entrar por trás, de fazer o caminho inverso ao de todo mundo. E aí sou mais uma vez marcada socialmente (estigmatizada, também), que nem gado no pasto! Sinto o cheiro do couro tostado… Mais um pra minha coleção. Então, se isso não faz parte de uma estrutura social de exclusão, não sei o que é, pois minha “identidade gorda” tem muita razão de existir e eu preciso reivindica-la constantemente senão eu NÃO ENTRO NO ÔNIBUS! Se sou parte das pessoas com mobilidade reduzida, então me deixem ACESSAR O TRANSPORTE PÚBLICO COMO É DE DIREITO. Se Eu, obesa, estou no Estatuto da Pessoa com Deficiência, porque sou impedida na prática de garantir o exercício dos meus direitos?! Porque não sou vista como prioritária no atendimento como uma pessoa com criança de colo ou muletas é vista?! Porque nesses momentos a patologização não vem em primeiro plano, o que vem é só a gordofobia – o estigma, a exclusão – ?! As pessoas gordas só servem para serem adoecidas e/ou quando estão pagando a industria do emagrecimento, é isso?! Ou quando estamos pedindo empréstimo no banco pra fazer uma cirurgia bariátrica Bypass gástrico?! São só nessas condições que a patologia vai fazer sentido e trazer uma funcionalidade na vida real, porque na hora de entrar no ônibus querem que eu passe na catraca a todo custo. Querem ver a gorda aqui (ou aí, é você mesma) passando a vergonha de rodar naquele negócio. Adoram ver a gente enroscada naquilo! É um sadismo sem precedentes! Nessas horas, gorda não pode ser do grupo de mobilidade reduzida porque essa galera tem direitos, logo, a gorda vai poder entrar por trás… E pra onde vão os olhares na sagacidade de uma cena constrangedora pra chamar de sua?! Pra onde vão as piadinhas, os comentários, as risadas?! E que fazemos com os conselhos para as crianças, sobretudo as meninas: “tá vendo filha, tem que emagrecer pra não ficar assim”?!
As pessoas fazem o quê se não tem uma gorda lá na frente fazendo a releitura contemporânea do show de aberração que acontecia no início do século 20?

 

Circus Bareback Rider – María Izquierdo. Blanton Museum of Art

Em São Paulo capital, o ex-prefeito  Maluf instituiu o bilhete único-Obesos em 1995 graças ao Projeto de Lei nº 37/1993 com uma justifica bem objetiva:

O presente Projeto de Lei esta revestido do princípio da legalidade. Objetiva o presente Projeto de Lei garantir ao obeso o direito de utilizar os meios de transportes que servem .a cidade. Isto porque, com as catracas existentes, não permitem a passagem dos obesos, por terem um es paço exíguo, não oferecendo possibilidade dos obesos entrarem nos ônibus. Portanto, o presente Projeto de Lei além de estabelecer a igualdade de direitos para o obeso, pois o transporte é um direito do cidadão, é, também, uma posição social e humanitária. Por estas razões arguidas esperamos que o Projeto de Lei prospere e se transforme em Lei.

Que coisa mais interessante, não é mesmo! Lá em 1993 (data do PL), quando eu tinha 2 aninhos de idade, a câmara de SP estava debatendo esse assunto que hoje tratamos aqui nos termos de GORDOFOBIA. O que me chama mais atenção nessa breve justificativa é a humanização das pessoas, porque consegue tratar sucintamente a problemática das catracas sabendo e defendendo o transporte como direito à todos e todas. Muito embora, um dos pareceres desse projeto trate a pessoa gorda como uma pessoa com limitação física, fazendo dela a grande culpada e beneficiária (paradoxalmente) uma vez que o bilhete-Obesos seria a solução do problema que seu corpo causava (???).  Bom, mais interessante que isso é a definição de obeso do Maluf&CIA

Parágrafo Único – Para efeito desta Lei o cidadão obeso é todo aquele que não consegue passar pela roleta dos ônibus por motivo de sua gordura.

Pra vocês verem como são as coisas…
Naquela época, IMC nem era citado, o que valia era na prática mesmo:
tu ficou entalado? OBESO ✓
E atualmente é perceptível o quanto essa noção se relativizou e foi altamente modificada, onde não importa mais se você passa ou não na catraca, se os números apontarem você será obesa. E aí a gente pode começar a pensar nessa dicotômica gorda X magra e que essas não são forças estanques, que a depender do período, serão inversamente proporcionais e sem um parâmetro internacional para definir; é interessante pra pensarmos nessa disputa do “você não é tão gorda assim” que rola ainda por aí entre as que vestem 48 e 60. Primeiro que eu visualizo estando sob a égide misógina e machista que promove a briga entre mulheres, neste campo, está em disputa os corpos, as identidades… em prol de quê? Não sei, mas gostaria de entender. Segundo que, as inseguranças contemporâneas provocadas pelas consequências de uma colonização europeia histórica não são assim tão fáceis quanto a gente quer; muito embora o empoderamento coletivo para frear esses padrões racistas de beleza esteja em alta, não é difícil compreendermos que, às vezes, a gente não tem essa força toda não… E que empoderamento nenhum cura tudo dentro da gente… Porque é aquela eterna manutenção de si mesma. Uma luta mesmo. Enfim… Um outro debate isso…

 

 

Francisco Zuñiga

 

A Câmara Municipal de Londrina instituiu a Lei 8934/02 | Lei nº 8934 de 23 de outubro de 2002 – DESOBRIGA OS PASSAGEIROS OBESOS À PASSAGEM PELAS CATRACAS DOS ÔNIBUS DE TRANSPORTE COLETIVO URBANO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

 

Art. 1º Para fins de utilização dos ônibus do transporte coletivo urbano do Município de Londrina, os passageiros obesos ficam dispensados de passar pela catraca desses veículos, sem prejuízo do pagamento da tarifa.

Olha só que ótimo! Está lá que não é obrigatório passar pela catraca, mas não foi descrito se é permitido a entrada pela porta do desembarque. Diferente da Câmara Municipal de Paranaguá, que já chegou assim

 

Art. 1º É permitido aos idosos, portadores de necessidades especiais, gestantes e obesos ingressarem no transporte coletivo urbano de Paranaguá, pela porta traseira.

Art. 2º O ingresso pela porta traseira não implica isenção de tarifa, exceto para aqueles que tenham esse direito previsto em Lei. 
Lei 2987/09 | Lei nº 2987 de 10 de setembro de 2009

 

Não sei se existe, mas seria interessante fazer um mapeamento das leis e portarias que já existem nesse sentido de garantia de direito das pessoas obesas, né?! Eu fiquei muito instigada à fazer isso e compreender melhor institucionalmente como a gente foi parar no Estatuto da Pessoa com Deficiência, por exemplo; ou como foram esses debates para formular leis… Algo a mais!

‘La Escalera’ (1986) by Mexican artist Francisco Zuniga (1912-1998). Lithograph, edition of 150, 29 x 21 in. via artnet

 

Nessas experiências em pedir POR FAVOR PELOAMORDEDEUS ABRE O FUNDO MOTÔ eu notei que é muito difícil promover a sensibilização dos homens. Quando eu peço para entrar pelo fundo, eles me olham como se tivesse fazendo algo absurdo de errado! E tenho um script pronto e falo exatamente assim depois de cumprimenta-lo

“por favor, motorista (ou motô, depende do meu humor), abre o fundo por gentileza? *mostra o SalvadorCard (bilhete do ônibus)*, é por causa da catraca”, justifico.

Entendam: eu explico o porquê do meu pedido pra evitar qualquer coisa! E mesmo assim, explicando, e eles vendo uma mulher grande e gorda com o bilhete na mão, as reações são sempre de:

  1. Desconfiança: “mas você vai pagar mesmo?”  Eu vejo muitos motoristas dando carona para marmanjo que pede só com um “Salvê piloto!! abre pánois aí!!!”, como se fossem super best friends, broders mesmo sabe!!! E nem é, dá pra ver. Mas a camaradagem masculina é algo muito loco! Eles se amam sem nem se conhecer, se protegem sem nem saber as intenções, se cuidam sem nenhuma prévia do outro; antes todo mundo fosse assim, mas só com as mulheres é estimulado que sejamos inimigas umas das outras, que sejamos competidoras e não aliadas… É muito intrigante essas dinâmicas! Meu ponto na real é porque o motorista se importa tanto com o pagamento de passagem. Que eu saiba não tem câmera nos ônibus por aqui, nem fiscal pra todo lado colado na deles… Então eu realmente continuo buscando outros sentidos para a desconfiança deles contra mim, que mostro meu bilhete e ainda tenho que ouvir a pergunta cretina de se eu vou pagar ou não!
  2. Deboche e autoritarismo: “você tem que ficar na frente“, “precisa mesmo ir lá atrás?!“, “*riso de deboche enquanto me olha*“.  Muito provavelmente me enxergam como piada pronta porque é constante os risinhos pra mim, mesmo eu estando séria. Frequentemente eles acham que eu não deveria estar ali pedindo aquilo porque na real, eles é que sabem o que eu preciso e SE TEM banco especial na frente, é para eu sentar na frente e NÃO RECLAMAR! Essa parte do NÃO RECLAMAR é a mais contundente porque eu estou num momento de VOU RECLAMAR SIM E BEM ALTO! Aline, minha namorada que o diga, essa daí reclama que é uma beleza!!! Com muita propriedade, de quem vive em Salvador há muitos anos e conhece muito bem essas dinâmicas pois ela também é gorda e precisa do busu pra tudo. Mas ela ainda passa na catraca, então desenvolvemos 2 modos de interação: o primeiro é ela indo na frente e pedindo pra abrir atrás pra mim; o segundo, é ela subindo primeiro e EU pedindo pra abrir o fundo. Em todas as vezes que agimos dessas diferentes formas, tivemos que debater com o motorista. Eu sozinha tive sorte de já pedir e não ter problema, além daquela olhada esquisita de costume! Mas juntas nunca foi tranquilo… Uma dia à Sussuarana nunca foi tão conturbada! É chato… a gente fica com energia ruim, de raiva e ódio, indignação, tristeza também.

Então nessa jornada toda, eu mais tenho perguntas do que conclusões finalizadas… Tenho reflexões incompletas do que respostas. Eu começo por mim para me perceber parte do todo; eu me incomodo para impulsionar esse incômodo e quem sabe, gerar transformação dessas relações de poder muito bizarras que estão intrínsecas no cotidiano… Eu preciso que o motorista entenda que eu sou gorda e que não quero passar pela catraca. Ele pode demorar muito a entender que gorda não é um xingamento ou que o plus size é tudodibom, não dá pra depender disso… Entendem?! Preciso que compreendam a muito além do look do dia.

 


Imagem em destaque: Francisco Zuñiga