CID 10 – E66: eu, obesa


Pesquisando sobre a “epidemia de obesidade”, eu tenho me irritado bastante porque os números estatísticos não batem, não fazem sentido; a divulgação dos resultados também é muito falha, muitas matérias que eu acessei não tem se quer a data (coisa fundamental) de publicação no rodapé da página! Além de que, as pesquisas brutas raramente ficam disponíveis, os dados já chegam bem mastigados e selecionados, fazendo sentido só pra o que querem que faça -logicamente.
 

“La espina” by Raúl Anguiano

 

 

Eu comecei a adentrar essas pesquisas porque, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) e seu IMC (Índice de Massa Corporal), eu sou doente e meu CID 10 é E66 (até decorei), considerada obesa grau III por órgãos internacionais. Eu faço parte do que chamam de “epidemia”, mesmo sendo gorda desde sempre. Nesse sentido eu comecei a perceber que empoderamento nenhum será suficiente para desmontar o discurso médico científico que simplesmente edifica o solo para que se construam todos os comentários e atitudes gordofóbicas que presenciamos cotidianamente. Para OMS, eu sou obesa e preciso me tratar. O mais curioso é que quando comecei a pensar na investigação desse tema, eu corri ligar para minha mãe e perguntar sobre um episódio que eu tinha bem ocultado da minha mente: Aos 15 anos eu pedi para fazer uma avaliação médica para cirurgia de redução de estômago. Essa parte do “eu pedi” tinha me esquecido, só lembrava de ter ido numa consulta com minha mãe e sair de lá com uma negativa por 2 motivos: Eu só tinha 15 anos (isso foi há exatos 10 anos atrás) e a cirurgia era muito cara (uns 12 mil reais, minha mãe não lembra exatamente). Por um ano a mais e muito dinheiro na conta poupança eu estaria operada hoje. Então imaginem o quanto esse mergulho no discurso médico está mexendo comigo internamente… Tem sido bem difícil. Eu já comecei e parei tantas vezes que perdi a conta. Hoje eu consegui dar mais passos: li e baixei muitas pesquisas e matérias a respeito desse assunto. Separei uma pasta no meu drive, salvei pdf, cheguei a pedir dados brutos de pesquisas sobre bariátricas pela lei de acesso à informação, porque pesquisas estão escondidas e eu quero entender melhor o que se passa.

by Fernando Olivera, Two Women

Algumas coisas não fazem sentido, as contas não batem, os discursos se ancoram em pesquisas que ninguém conhece ninguém viu, não há um debate público acerca dessa questão… Insistem em medidas de “controle” à obesidade a partir da ideia de que a população mundial tem sobrepeso (tudo medido a partir do IMC, o mesmo que é relativizado quando da avaliação individual para indicação de uma bariátrica, é usado pra medir indiscriminadamente a população mundial: coerência, kd?), logo, são futuros obesos. E as perguntas que eu me faço são várias, mas dentre elas: Porque consideram uma epidemia? As pessoas estão morrendo em quais condições?! Porque estão considerando doente as pessoas que tem alguns quilos a mais? Se o argumento gira em torno da preocupação com a saúde e qualidade de vida, porque há um alto investimento em novos remédios indicados para tratar obesidade? Porque o investimento alto nas tecnologias para cirurgias bariátricas? Porque não há se quer MENÇÃO do quanto a sociedade prioriza um padrão estético branco e margo inalcançável em detrimento da multiplicidade de corpos?  Porque a publicidade não é lembrada nesse bolo todo?! Porque políticas de “controle” e “redução” de sobrepeso e obesidade tem foco nas PESSOAS, culpabilizando-as pelo próprio corpo? Porque não combate-se a cultura neoliberal que impulsiona não só o consumo de açucares, gorduras e sal, mas que impossibilita políticas de avanço para agricultura familiar, acesso à saneamento básico e água potável, ou mais ainda, retira direitos fundamentais das pessoas (alo alo PEC da Morte!) como acesso à saúde pública (Adeus, SUS!) e à educação?! Preciso lembrar que (des)emprego -uns tem, outros muitos não tem- também é fator que de desencadeia uma séria de coisas na vida da gente, mas isso nunca é levado em consideração nas análises que eu já li.  Nem são levados em conta o papel que a indústria farmacêutica desempenha nisso tudo, menos ainda o agronegócio que deliberadamente, comanda o que a gente come…  é quase como se não existissem.  No rumo que essas pesquisas tem tomado, estão considerando absolutamente todas as pessoas com 1kg a mais daquilo que diz o IMC como obesas, porque colocando sobrepeso e excesso de peso no mesmo bojo de doença, que é a obesidade, logo, somos todos e todas doentes! Isso mesmo, eu que peso 150kg e você que pesa 60kg, (a depender da altura, claro, respeitemos o sagrado IMC), somos doentes. Bem-vindes!
Entenda o que houve: Em 2016, o Conselho Federal de Medicina, ampliou de 6 para 21 o número de doenças associadas à obesidade e que podem levar a indicação da cirurgia bariátrica, isso significa que estão associando muitas outras doenças à uma doença, entenderam? Tipo, outras doenças associadas à obesidade, logo, se você tiver 1 dessas 21 doenças e estiver com o IMC entre 35 kg/m² e 40 kg/m você já é uma paciente com pré-disposição à fazer redução do estômago.

 

Francisco Zuñiga – Juchitecas 21.5″h x 27.5″w. (1974)

Eu realmente não tenho a intenção de demonizar a cirurgia ou endeusar a obesidade porque eu compreendo que há SIM problemas de saúde que decorrem do excesso de peso, isso eu tenho plena convicção de que existam sim; eu tenho consciência do meu corpo e do meu peso… Não acho errado a cirurgia, porque para muita gente essa foi a única saída para não morrer, literalmente. Eu não deixo de considerar possível faze-la se um dia a necessidade real aparecer para mim. O que eu trato aqui nesse texto não é de cunho moralista ou de perseguição a quem faz ou pretende fazer. Ao contrário, eu quero que cada vez MENOS esse recurso seja utilizado, quero que as pessoas se conscientizem sobre o que está por trás dessa onda que vem afogando todo mundo sobre obesidade… É algo muito criminalizador também e, consequentemente, culpabilizador. Porque as exigências estéticas chegam primeiro do que o cuidado com a saúde, isso é “consequência”. O padrão de beleza magro  e a expectativa que se tem em alcança-lo é muito mais enfatizado do que propriamente uma preocupação com a saúde. Eu não consigo conceber como justa a maneira como esses tantos especialistas (que eu duvido serem obesos) tratam o assunto, de uma forma economicista e na base de eufemismos, deveras desumanizada; tratam todas as pessoas como dentes que precisam se curar. Como podemos achar ok as diversas análises e boletins epidemiológicos que homogenizam as pessoas, os países e as culturas em prol de um alarde que não surte efeito, pois todas as indicações que fazem ora são de cunho individualista (a depender de quem fala) ora são de  uma inclinação mais social e coletiva, mas nunca contestam as políticas neoliberalistas em pleno vapor nos países da América do Sul, por exemplo. Por outro lado é compreensível essas dualidades e contradições nos discursos… Porque até mesmo quem denuncia tem um lado,  não existe política neutra e ir à fundo nesta questão e jogar bosta no ventilador pode irritar muita gente lá do alto dos seus poderes…

Guillermo Meza:

by Guilhermo Meza


Enquanto isso, muitas pessoas tem, literalmente, engordado para EMAGRECER com a cirurgia.  Sim! Isso existe e é cada vez mais recorrente essa situação porque não é exatamente a saúde que está em jogo, é a forma como nos sentimos com nosso corpo, logo, é a forma como as pessoas nos enxergam e nos avaliam – estamos em estado de vigilância constante.  A questão da bariátrica ser indicada para pessoas obesas é porque elas realmente precisam, mas ao notar o número crescente do procedimento, muita gente que não tem indicação direta tá passando pela cirurgia por outros motivos que não o de saúde. Eu conheço alguém que engordou para fazer a cirurgia bariátrica porque não tinha o peso “ideal” que pede a cirurgia, então ok vou engordar para emagrecer. Se pensar bem, talvez você aí também conheça, e não será coincidência se essa pessoa for uma mulher, viu?!
O nível que a gordofobia tem atingido na vida das pessoas, tenham elas o tamanho ou o IMC que for, é absurdo a ponto de se submeterem  a um regime de engorda só para emagrecer na base da cirurgia depois: Porque tem alguém que faz, que aceita, que não se recusa. Pagou, fez.  Tem gente para dizer que isso é bom, que tudo bem e que não há nada demais nessa atitude. Tem também uma mídia que colabora tanto para o convencimento de que ter um corpo grande e/ou gordo é errado quanto para legitimar a cirurgia bariátrica como solução dos problemas DA VIDA! Porque o discurso é de que, se sua vida tá ruim é porque você está gorda demais.  Além é claro, de endossar e atualizar o próprio discurso de que “só é gordo quem quer”, ou que “gordo é preguiçoso” e só sabe “fazer gordice”. Focando em histórias de pessoas que tiveram um suposto “sucesso” na cirurgia para dizer o quanto todas as outras pessoas deveriam fazer como AQUELA pessoa e evidentemente, “correr atrás” e ter “força de vontade”, porque “QUEM QUER CONSEGUE”, não é mesmo? Eu já ouvi isso tantas vezes na minha vida e ouço até hoje… É o discurso da meritocracia, esse mesmo que vai dizer que pessoas negras não precisam de cotas por que “é só se esforçar” pois “tem que batalhar para conseguir o que quer”, porque cotas é “uma forma de preconceito”, como se partíssemos todas do mesmo patamar e não enfrentássemos barreiras diversas para conseguir viver.  É balela! É da mesma raiz…

Francisco Zuñiga – Mujeres Con Nino En La Puerta

 
Esse é um pequeno desabafo de quem começou a pesquisar sobre o discurso médico científico que me patologiza, que me causa ansiedades e distúrbios porque ele aparece pela boca da minha mãe, de colegas, de conhecidos; é o discurso dos homens brancos da ciência gananciosa que foram moldando no olhar das pessoas e na percepção que elas tem sobre mim. É o discurso médico que me adoece, literalmente, porque não permite que as pessoas me vejam como alguém inteligente e capaz, útil, perspicaz para exercer qualquer atividade laboral. Não atoa eu estou desempregada há mais de 6 meses, porque a cada entrevista é o discurso médico agindo sob mim! É o impedimento físico, psicológico, econômico e financeiro agindo sobre meu corpo e não permitindo que eu me desenvolva enquanto pessoa. Esse discurso precisa ser combatido pela raiz! Não tem me deixado mais satisfeita só ir de biquíni à praia. Eu quero a destruição desse discurso que patologiza TODOS os corpos. Eu quero o fim dessa fobia à gordura em nome de uma pseudo saúde que NUNCA vai existir nestes moldes políticos de Estado mínimo e privatizações máximas. Enquanto os homens brancos do agronegócio mundial ditarem o que é a obesidade; enquanto eles aumentarem supermercados de comidas não-nutritivas; enquanto a agricultura familiar for destruída pela poluição das águas, a impossibilidade do plantio e colheita continuar sendo imposta, o roubo de terras e a usurpação das condições mínimas de vida… Enquanto o neoliberalismo reinar, nós continuaremos todos e todas obesas, fadadas realmente à essas doenças que são invenção do capital para se manter: a obesidade e a desnutrição demonstram que estamos a frente de um desafio muito maior do que imaginamos, porém,  há saídas estratégicas e urgentes mas que ela terá de ser forçada por todas: A soberania alimentar pode ser uma das ferramentas de reversão das condições materiais que nos impõe o títulos de obesos e nos condena uma “epidemia” que só nos responsabiliza pelo fato de empresários multimilionários deterem o poder de decidir quem come, o que come, quando come. É algo mais profundo, diz respeito à todo um sistema econômico que nos permeia diretamente, e que precisamos nos atentar a isso também se quisermos reverter o discurso gordofóbico… porque esse discurso não surge do nada, ele tem exatamente propósitos políticos e está prestando um $erviço…

by Alfredo Ramos Martinez

Pretendo desenrolar melhor esse assunto em próximos textos, hoje eu só precisava desaguar.

OUTROS LINKS:

Imagem destacada: Maria Izquierdo, Naturaleza Viva (Still Life), oil on canvas, 1946.